Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diverticulite, linfoma e gripe suína

Afinal, a gripe é suína ou porcina?

A mídia precisa tomar decisões em cima da hora e é compreensível que algumas coisas não saiam perfeitas. A seu favor, tem paradoxalmente a própria rapidez do processo. No dia seguinte pode corrigir a informação imperfeita. Na internet, a versão eletrônica pode ser arrumada no minuto seguinte àquele em que o erro foi cometido.

Um dos maiores atrapalhos ocorre na tentativa de simplificar a linguagem científica. O nome das doenças está neste caso.

A diverticulite de Tancredo Neves, o linfoma da ministra Dilma Rousseff e a gripe suína ou porcina estão neste caso: o nome das coisas. Afinal, no princípio era o verbo, e no meio e no fim também será.

Deuses para tudo

Porcina e linfoma chegaram ao português (escrito) na segunda metade do século 19. Mas as palavras ‘porco’ e ‘porca’, substantivos que deram origem aos adjetivos ‘porcino’ e ‘ porcina’, aportaram no primeiro século do segundo milênio, quando, vinda do tronco latino, brotava a língua portuguesa, seguindo caminho semelhante àqueles tomados pela espanhola, pela italiana, pela francesa, enfim pelas neolatinas – o que levou o poeta Olavo Bilac, em famoso poema, defini-la como ‘última flor do Lácio, inculta e bela’. Talvez não tenha sido a última, mas deixemos pra lá.

‘Porco’, e ‘porca’, ‘porcino’ e ‘porcina’, ‘suíno’ e ‘suína’ estão registrados pelo dicionário de Antonio de Moraes Silva, um dos primeiros da língua portuguesa, mas os dois últimos são os mais antigos. Seu primeiro registro é de 1648. É provável contudo que, como substantivos, designando o porco e a porca, estivessem na fala bem antes, pois as pesquisas somente rastreiam os documentos.

Das doenças cuidam os médicos e também os jornalistas, que precisam bem informar o distinto público, conciliando precisão e simplicidade, o que nem sempre é possível.

A etimologia oferece a clara luz, mas ela anda esquecida de escolas e universidades, sendo raros os que pesquisam nesta área. O étimo latino de ‘médico’ radica-se na raiz indo-européia ‘med’, contemplar, pensar, refletir, e tem o sentido de intermediário. Primeiramente, nos albores da medicina, quando a arte médica era ainda feitiçaria (acho que ainda é, em muitos casos), o médico invocava deuses e deusas da saúde. Como se sabe, os antigos gregos e romanos tinham deuses para tudo. Em resumo, fosse feiticeiro ou pajé, o médico recorria a forças sobrenaturais. Era quando errava menos. Não esquecia nenhum instrumento cirúrgico dentro da barriga do paciente nem receitava remédios que pioravam seu estado de saúde.

Saúde perfeita

Mas, para os gregos, a denominação era outra. O medicus na Grécia antiga, ao tempo de Hipócrates (entre os séculos 5 e 4 antes de Cristo), era iatros, étimo que ainda está presente em pediatria, psiquiatria, geriatria etc. O iatros passou a ser chamado de klinikós por Galeno (século 2 depois de Cristo) porque, não havendo hospital, o iatros tratava dos doentes em suas próprias casas e eles eram atendidos no leito, kline em grego. Kliniké, clínica, indicando a arte e a técnica de curar, mas que hoje designa de hospital a casa de massagem, tem o mesmo étimo de inclinar, pois aludia ao profissional, klinikós, que se inclina sobre o leito para tratar do doente.

Iatros veio ao latim como sufixo e prefixo e está presente, por exemplo, no livro do belga Ivan Illitch (não sei por que razão é tão pouco lido) sobre iatrogênese, intitulado Nêmesis da Medicina, que trata das doenças que a pessoa contrai nos hospitais. Ali a pessoa é curada da doença que a levou a internar-se, mas volta com muitas outras, esta é a tese dele, demonstrada com as infecções hospitalares, por exemplo.

Na Idade Média, quando as pesquisas sobre a natureza das doenças avançaram, o médico foi chamado physikós em grego – physicus em latim. O étimo, aliás, está presente no inglês atual, pois médico é physician, variante para doctor, medic e practitioner. Há até um bom romance de Noah Gordon, intitulado The Physician, que no Brasil saiu com o título equivocado de O Físico,com o subtítulo ‘epopéia de um médico medieval’.

Uma última curiosidade sobre o tema. Era médico o evangelista São Lucas, que narra um Jesus sempre em perfeita saúde, sem doença alguma, mas ele e todos os evangelistas aludem às doenças curadas por meio de milagres. O tema da cura milagrosa está na mídia todos os dias, não mais do nascer do sol ao poente, mas dia e noite, e sobretudo nas madrugadas.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)