Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cinema brasileiro quase ausente em Berlim

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O Brasil é um país culturalmente em declínio e seu cinema está moribundo. Depois de ter ganhado tantos prêmios e de ter mostrado tantos filmes no Festival Internacional de Cinema de Berlim, a participação brasileira este ano será quase nula. Nisso, o presidente Bolsonaro atingiu seu objetivo: queria matar o cinema nacional, pois está matando. Esse é mais um atestado da decadência política e cultural que atinge hoje todos os setores do país.

Ainda no Festival de Berlim do ano passado, quando o Brasil chegou com 18 filmes em competição, a atriz portuguesa Leonor Silveira, tinha feito uma importante declaração: “o governo Bolsonaro está cometendo um crime contra o cinema brasileiro, isso é uma vergonha mundial”. Leonor é uma das nove atrizes no filme Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, exibido em 2020 na competição internacional.

A produtora do filme, Sara Silveira, havia denunciado o que se passava no Brasil, na estreia do filme em Berlim: “o cinema brasileiro está em perigo sob esse governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Estamos sendo totalmente tolhidos, freados por um governo que não entende de cinema, talvez por lhes faltar inteligência. Já que são tão neoliberais não percebem a importância também econômica do cinema para o Brasil, além de criar empregos?”.

Mas não era surpresa, desde sua campanha eleitoral Bolsonaro ameaçava a Ancine, primeiro prometendo criar filtros ou censura e, logo depois, falava claramente em fechar a Agência Reguladora do Cinema, criada em 2001 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, alguns anos depois de ter sido encerrada a Embrafilme. O objetivo da Ancine era o de fomentar, criar e fiscalizar a indústria cinematográfica, ficando ligada ao Ministério da Cultura.

O problema de Bolsonaro não é estar só contra o cinema. Inculto, ele é contra a Cultura em geral. Por isso, antes mesmo de liquidar a Ancine, acabou com Ministério da Cultura, transformado inicialmente numa Secretaria da Cultura mas, logo depois, sendo agregada essa secretaria ao Ministério do Turismo. O que está acontecendo hoje com o cinema, está também acontecendo com todos os setores da cultura, com verbas diminuídas ou simplesmente cortadas.

Bolsonaro não quer privatizar só nossas grandes empresas estatais, ele quer privatizar tudo no seu delírio neoliberal. “Por que o governo, o poder público tem de se meter a fazer filmes?”, se perguntou numa de suas críticas à Ancine. Para ele, a indústria cinematográfica brasileira, que faturava milhões e que era nacional, usando temas brasileiros, não precisa existir. Assassinado o cinema brasileiro, será substituído principalmente pelo cinema norteamericano e estrangeiro em geral. E seria interessante se saber como estão os incentivos culturais nas universidades federais e nos museus, as verbas estão sendo mantidas ou diminuídas?

Mas não é só o aspecto econômico neoliberal que impulsiona Bolsonaro, no seu afã de privatizar tudo e destruir mesmo o acesso do povo à cultura pelo poder público. Existe ainda, o aspecto populista preocupado em manter os preconceitos populares, alimentados por crendices, hoje recuperadas por pregadores evangélicos sem qualquer formação teológica, antigos vendedores de produtos sem interesse nas praças públicas, hoje vendendo a salvação da alma para a manada bolsonariana. Acabar com a Cultura em todas suas formas e fomentar a Ignorância parece ser o objetivo não confessado, mas evidente, do governo.

E a Ancine, e a constatação de um cinema brasileiros moribundo, logo mais no Festival de Berlim e nos outros festivais? A Ancine não foi fechada mas está praticamente paralizada, não há mais financiamento para filmes, mesmo se existe dinheiro guardado. Quem depende da realização de filmes para viver está desesperado, desde técnicos a artistas, produtores e realizadores. Todas as pequenas empresas ligadas à produção de filmes estão quebrando. O cinema brasileiro está agonizante, ou abre caminho para as produtoras estrangeiras ou, quem sabe, haverá um espaço para filmes evangélicos e de extrema-direita.

O Festival de Berlim procura driblar o coronavírus

Fevereiro é o mês do grande Festival Internacional de Cinema de Berlim. Não este ano, por culpa do coronavírus, que impede reuniões de pessoas. Porém, isso não significa uma paralização total. A solução encontrada por seus dois diretores, a alemã Mariette Rissenbeek e o italiano Carlos Chatrian foi a de dividir a Berlinale, como é também conhecido o Festival de Berlim, em duas partes:

– uma dedicada à Indústria do Cinema, que será online e incluirá algumas das categorias de filmes existentes no Festival sem a presença física de expectadores. Esta primeira parte se prolongará por cinco dias – do 1 ao 5 de março;

– a outra parte, se as vacinas permitirem, terá a presença física da imprensa, dos críticos e dos profissionais do cinema. A data não é tão distante. No caso, os diretores da Berlinale fazem uma aposta arriscada: a de que dentro de quatro meses as autoridades políticas e sanitárias terão acabado com os confinamentos. Essa segunda parte, a principal da Berlinale, com as principais competições, terá o nome de Verão Especial, se prolongará por 11 dias, irá do 9 ao 20 de junho.

Nenhum filme brasileiro foi selecionado para a principal mostra, a Competição. A situação brasileira se reflete atualmente no campo da cultura e isso fica evidente na diminuta participação brasileira na 71. Berlinale, notadamente na ausência de filmes brasileiros na mostra Geração, onde costumam se revelar jovens talentos brasileiros.

O primeiro filme brasileiro citado na relação de filmes selecionados surge na Berlinale Series: trata-se da série Os Últimos Dias de Gilda, imaginada e dirigida por Gustavo Pizzi com os atores Karine Teles, Julia Stockler, Antonio Saboia, Ana Carbatti e Lucas Gouvêa.

O tema é bem atual dentro de um Brasil onde os evangélicos estão perigosamente unidos com o poder público. A figura principal é Gilda, mulher só e livre, que trabalha e luta por sua sobrevivência sem ceder à pressão dos vizinhos conservadores e ao assédio dos machistas.

O outro filme brasileiro selecionado está na mostra Panorama Documento. Trata-se de A Última Floresta, de Luiz Bolognesi, falado na língua indígena dos Yanomami. Bastante dentro da realidade atual brasileira, a nova imagem internacional do Brasil, os incêndios das florestas, a invasão das terras indígenas e um país sem respeito por suas origens. É a luta de uma tribo existente no norte do Brasil contra a invasão de garimpeiros, sem qualquer proteção por parte do governo.

Na mostra Fórum, há uma coprodução argentino-brasileira, Esqui, dirigida pelo argentino Manque la Banca, uma mistura de documentário com drama. E, por último, o Brasil aparece com o filme Se Hace Camino al Andar, uma Instalação de Paula Gaitán.

Para fazer uma comparação, antes e depois de Bolsonaro

No último Festival de Berlim, o de 2020, o Brasil – ainda sem sofrer as pressões de Bolsonaro no cinema – alcançou o recorde de filmes no Festival, ao todo 19 produções brasileiras foram exibidas em competição.

Além do filme Todos os Mortos, na competição principal, forma seleciondas cinco produções brasileiras na mostra Panorama, cujo tema principal era a situação dos imigrantes, foram selecionadas cinco produções brasileiras.

– Cidade Pássaro (Brasil / França), de Matias Mariani
– Nardjes A. (Argélia / França / Alemanha / Brasil / Qatar), de Karim Aïnouz
– O Reflexo do Lago (Brasil), de Fernando Segtowick
– Um Crímen Comun (Argentina / Brasil / Suíça), de Francisco Márquez
– Vento Seco (Brasil), de Daniel Nolasco

A mostra Geração, selecionou quatro produções brasileiras. Dedicada a retratos da infância e da juventude, os filmes dessa mostra foram divididos entre Kplus, apropriados ao público infantil, e 14plus, voltados aos adolescentes.

– Kplus
– Rã, de Ana Flávia Cavalcanti e Júlia Zakia
– 14plus
– Alice Júnior, de Gil Baroni
– Irmã, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes
– Meu Nome É Bagdá, de Caru Alves de Souza

Para as mostras Forum e Forum Expanded, dedicadas ao cinema experimental, foram selecionadas sete produções brasileiras.

Forum

– Vil, Má (Brasil), de Gustavo Vinagre
– Luz nos Trópicos (Brasil), de Paula Gaitán
– Chico Ventana También Quisiera Tener un Submarino (Uruguai / Argentina / Brasil / – Holanda / Filipinas), de Alex Piperno

Forum Expanded

– Apiyemiyekî? (Brasil / França / Holanda / Portugal), de Ana Vaz
– Jogos Dirigidos (Brasil), de Jonathas de Andrade
– (Outros) Fundamentos (Brasil), de Aline Motta
– Vaga Carne (Brasil), de Grace Passô e Ricardo Alves Jr.
– Letter From a Guarani Woman in Search of the Land Without Evil (Brasil), de Patricia – Ferreira Pará Yxapy

___

Indicações de leituras complementares do autor

Escolhas políticas em Berlim: lições para o Brasil

Censura no cinema e no teatro está de volta

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.