Decisões importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionadas ao jornalismo e à divulgação de megavazamentos marcam o início de 2021 no Brasil. Em plena pandemia, o STF deliberou sobre o sigilo da fonte jornalística e sobre o direito ao esquecimento; em paralelo, foram noticiados vazamentos sem precedentes de dados pessoais dos brasileiros. Essas temáticas têm em comum alguns aspectos fundamentais da prática jornalística, em particular, a privacidade e o tratamento de dados.
Neste mês de fevereiro, o STF encerrou um processo de tentativa de quebra de sigilo de fonte envolvendo o jornalista Allan de Abreu, que há dez anos se recusou a revelar seu informante e virou alvo de um inquérito da Polícia Federal (PF) e de uma Ação do Ministério Público Federal (MPF). “O caso começou em maio de 2011, quando Abreu publicou uma reportagem no jornal Diário da Região, de São José do Rio Preto (SP). O texto continha o conteúdo do inquérito de uma operação deflagrada semanas antes pela PF e pelo MPF sobre um esquema de corrupção na delegacia de trabalho da cidade”, informou Folha de S.Paulo, em matéria do dia 13.
O responsável pela operação no MPF, o procurador da República Álvaro Stipp, pressionou Abreu a revelar a sua fonte, mas o repórter não quebrou o sigilo. Na semana seguinte, o jornalista foi intimado a depor em pesquisa da PF e foi indiciado por quebra de sigilo de escuta telefônica. O MPF pediu a quebra do sigilo telefônico do profissional e de toda a redação do jornal em que ele trabalhava, na tentativa de se chegar ao informante.
Diante da situação, o STF ratificou o sigilo da fonte jornalística que consta no artigo 5º, inciso XIV, da Constituição Federal, reafirmando que ele impossibilita que o Estado utilize medidas coercivas para constranger a atuação profissional. “É delicado e constrangedor para o jornalista ficar em uma decisão como essa. Até porque quem quebra o sigilo é o servidor que tem acesso a essas ferramentas. Cabe ao jornalista publicar em caso de interesse público”, afirmou Abreu para Folha de S.Paulo. Essa decisão do STF reafirma a proteção constitucional do sigilo da fonte e garante o livre exercício da atividade jornalística.
Em fevereiro, o STF negou o reconhecimento do chamado “direito ao esquecimento”, que abriria a possibilidade de os meios de comunicação serem impedidos de divulgar informações de um fato verídico considerado prejudicial ou doloroso. Nesta decisão, novamente os ministros do STF enalteceram a liberdade de expressão que, nesse caso, era confrontada com o direito à intimidade.
A tese aprovada pelo STF indica que “é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como um poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”. Conforme a decisão, os possíveis excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso.
As decisões do STF demarcam a importância do trabalho jornalístico em um contexto democrático e chamam a atenção para questões como sigilo, privacidade, liberdade de expressão e de informação. Atualmente, essas temáticas têm uma relação direta com um elemento que está sendo negligenciado por inúmeros jornalistas, a segurança digital.
Megavazamentos escancaram um estado de insegurança digital generalizado
Em paralelo às decisões do STF, que exaltaram a importância e a necessidade de manutenção do sigilo da fonte e da liberdade de expressão e informação para a prática jornalística, foram noticiadas informações que ratificam a preocupante realidade vivenciada no ecossistema digital brasileiro. Os jornalistas estão atuando em um ambiente de insegurança digital generalizado.
Nos primeiros meses de 2021, dois megavazamentos de dados privados foram denunciados. Ainda em janeiro, veio à tona o vazamento de pacotes de dados com informações pessoais de mais de 223 milhões de brasileiros. Os dados foram oferecidos em fóruns usados por criminosos digitais. Em fevereiro, a empresa de segurança cibernética PSafe divulgou o vazamento de quase 103 milhões de registros de celulares.
Conforme Marco DeMello, CEO da PSafe, “esses megavazamentos evidenciam que o mundo vive nada menos que duas pandemias: uma de covid-19 e outra ‘de ciberataques’”. Em uma realidade de múltiplos ataques digitais, todos os indivíduos estão vulneráveis – no entanto, jornalistas e ações jornalísticas são particularmente afetados por essa situação. Nas rotinas que envolvem o jornalismo atualmente, a preservação da liberdade digital é tão importante quanto à da liberdade de expressão, e a manutenção da privacidade dos jornalistas é crucial para a realização de sua atividade profissional.
Dimensões ligadas ao sigilo na troca de informações, à conscientização de riscos e à adoção de práticas seguras para minimização de ameaças são elementos imprescindíveis no contexto atual. As redações jornalísticas brasileiras e os jornalistas de uma maneira geral têm uma dificuldade a mais para atuar nesse ambiente inseguro, pois, em algumas ocasiões, tratam de dados sensíveis que são mais qualificados.
O ambiente digital é hostil à prática jornalística e apresenta possibilidades de ataques acessíveis que exigem o mapeamento de vulnerabilidades por parte dos profissionais. O sigilo da fonte e a quebra de confiabilidade são riscos significativos que exigem cuidados que perpassam o armazenamento e o trânsito dos dados, a partir de estratégias de defesa que garantam camadas de controle de segurança das informações.
Além disso, a exposição de dados de jornalistas pode se desdobrar em ataques digitais direcionados que comprometam investigações e outros aspectos da vida profissional e pessoal do jornalista. Logo, o desconhecimento das possibilidades de mitigação de riscos digitais pode comprometer a capacidade para atuação no ambiente digital nocivo.
A revelação de megavazamentos de dados pessoais serve de alerta para os níveis de segurança dos dados e informações que estão sendo implementados pelos jornalistas. Ferramentas de comunicação e dados pouco seguros podem comprometer aspectos essenciais da profissão que foram enaltecidos e ratificados pelas decisões recentes do STF. Por razões de conveniência ou desconhecimento, os profissionais não podem abrir mão de formas de mitigação de riscos digitais. Em um contexto de insegurança digital, essa é uma competência inerente às rotinas jornalísticas e está particularmente relacionada à preservação do sigilo da fonte, da privacidade, da liberdade de expressão e de informação.
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Referência
TORRES, Ricardo. Jornalismo vigilante sob vigilância: vulnerabilidades e potencialidades do jornalismo investigativo brasileiro. Tese (Doutorado em Jornalismo). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2020. Disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PJOR0149-T.pdf. Acesso em: 15 fev. 2021.
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Por Ricardo José Torres, Doutor em Jornalismo pelo PPGJOR e pesquisador do objETHOS.