Alguma coisa acontece no meu coração quando leio colunas e colunas comentando o cancelamento de Karol Conká. A Cinemateca Brasileira arde, a Casa de Rui Barbosa está no limbo, o Conselho Superior de Cinema congelado, o Instituto Vladimir Herzog dispensado pela minguante lei Roaunet, o livro é taxado em até 20 % — mas na berlinda está o BBB 21.
Dá para entender que a brutalidade tomou conta de nós, que não dá mais para rir de O Bem Amado, de Dias Gomes, no streaming porque a realidade agora é mais estranha do que a ficção, os terraplanistas estão por toda parte — mas gente, foi Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão quem disse, para perder de Bolsonaro é preciso errar muito.
Onde estamos errando? No Congresso, o boicote à Constituição. Na Amazônia, savana. No Palácio, patentes. Na caserna, ministros. Nos hospitais, 10 milhões de infectados. Nos cemitérios, 250 mil mortos. Nas ruas, 13,5% de brasileiros desempregados. Para cada civil, seis armas. Para as três vagas que vão abrir em julho no STF, evangélicos babando. Inimigos imaginários e conspirações, por toda a parte. Educação, zero.
Impeachment ou sangria, desgaste de Bolsonaro até 2022? Bolsonaro, como Bashar al-Assad, venceu, mas a Síria e o Brasil acabaram. Bolsonaro pode não cair de podre, mas o Brasil pode apodrecer. Enquanto isso, a Comissão de Constituição e Justiça é entregue à principal investigada por fake news, Bia Kicis, que liderou um manifesto contra o lockdown em Brasília — deve achar pouco 250 mil mortos. Os líderes no Congresso são condenados pelo STF, acusados de receber propina, corrupção, lavagem de dinheiro, réus em várias ações. O inacreditável chanceler Ernesto Araújo angariou 773 mil seguidores com “diplomacia popular” no twitter investindo na extrema direita. E as “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro recebem um sopro amigo do STJ, foram enterradas. É o país dos obituários.
E dos iletrados. Bolsonaro diz que “é certo” tirar os jornais de circulação, Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, O Antagonista — segundo ele “fábricas de fake news”. “Planalto não comenta” as perguntas dos jornalistas. Ou manda demitir aqueles que fazem perguntas impertinentes tipo “que avaliação o sr. fez da decisão do STF de derrubar a quebra de sigilos fiscais” como o frila João Renato Jácome fez em Rio Branco e acabou exonerado da Prefeitura onde trabalhava. No Congresso, Arthur Lira (PP-AL) vai remover os jornalistas de seu caminho, despejados da Sala de Imprensa que é inviolável em toda democracia. Com isso, desfigura o projeto original de Oscar Niemeyer. Editada na ditadura, a lei de Segurança Nacional está sendo replicada revivendo figuras obscuras como os ex-ministros da Justiça Alfredo Buzaid (censura em 1970) e o sucessor Armando Falcão disposto a combater com a famigerada lei publicações subversivas, “obscenas”. O alvo é certeiro, imprensa, opositores. Leite condensado não combina com mortadela, escreveu Ricardo Araújo Pereira na Folha, a receita que o humorista indica é “duas latas de leite condensado; um rabo de jornalista.”
No Congresso tinha um deputado federal (PSL-RJ) que havia sido preso 60 vezes, Daniel Silveira se gabava de 90 prisões. Ele está preso mas pouco antes, ao lado do Secretário Malhação da Cultura, Mário Frias, ele criticava o “contingenciamento” das verbas para projetos culturais. “Nosso sorriso representa o nosso deboche para esse câncer chamado esquerda, vamos desmontar a mamata armada por vocês”. A “mamata” está sendo desmontada, Bolsonaro afirmou sobre o “câncer” da cultura, “o Estado vai deixar de patrocinar isso aí”. Secaram os recursos públicos destinados a instituições culturais, produtores, escritores, artistas. Cultura é invenção da esquerda? Como Silveira, Bolsonaro também enaltece a ditadura, prefere um regime “um pouco diferente do que temos hoje — mas não está preso.
Não tivemos Carnaval, o Centrão fez a Apoteose e o Congresso se encarregou do espetáculo da Comissão de Frente, dos carros alegóricos, das fantasias de poder. Truculência, sim. Mas esperando Godot como Vladimir e Estragon é que não se vai longe. E como V.S. Naipaul escreveu num ensaio sobre Joseph Conrad, o escritor deve interpretar o mundo, e não apenas ser a câmera fotográfica. Nós, escritores dessa história contemporânea não podemos assistir, aplaudir, reproduzir Karol Conká, 21 anos, de miolo mole, só porque foi a busca mais pesquisada no google trends. Em vez de BBB 21, sugiro o cancelamento de Bolsonaro Conká.
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Norma Couri é jornalista.