A atuação da imprensa tornou-se ainda mais fundamental durante a pandemia da Covid-19. Não é novidade que, mesmo em meio às dificuldades trazidas e ampliadas pelo cenário imposto, os profissionais têm se empenhado em garantir o acesso da população a informações precisas e contextualizadas sobre o panorama da doença no Brasil e no mundo, da prevenção e das medidas de enfrentamento contra o novo coronavírus.
Em meio à enxurrada de informações divulgadas diariamente e às diversas notícias que causaram incertezas e trouxeram insegurança nesse contexto, o debate em torno do papel dos veículos de imprensa no combate à desinformação foi ampliado e, nas últimas semanas, alimentado por novos enredos.
No dia 23 de fevereiro, oito veículos de imprensa publicaram um informe publicitário, intitulado de “Manifesto pela Vida”, que defendia e incentivava a adoção de um coquetel de medicamentos para o tratamento precoce contra a doença. O problema? Não existe comprovação científica de tratamento precoce eficiente para a Covid-19 ou recomendação de uso de qualquer medicamento por parte de diversas organizações nacionais e internacionais.
Entre os veículos que publicaram o anúncio, pago pela Associação Médicos pela Vida, estão O Povo (CE), Jornal do Commercio (PE), Correio (BA), Estado de Minas (MG), Correio Braziliense (DF), Zero Hora (RS), O Globo (RJ) e Folha de S.Paulo (SP) — os dois últimos, inclusive, fazem parte de um consórcio de mídias formado por um grupo de veículos de comunicação que se uniu para trabalhar de forma colaborativa na busca de dados e informações sobre o avanço da doença no Brasil.
Repercussão
A contrariedade foi debatida por jornalistas e diversos veículos emitiram suas opiniões, grande parte reforçando a importância do papel da imprensa no combate à desinformação e que a luta contra as notícias falsas não deve ser restrita às redações, mas adotada por toda a organização jornalística. Ainda no dia 23, a agência Lupa emitiu um editorial desmentindo o anúncio e destacando a importância da imprensa, ao se deparar com situações que possam contribuir para a divulgação de informações falsas, ir contra seus interesses financeiros.
Para João Filho, em texto divulgado no The Intercept, esses jornais passam a ser “coatores de um atentado contra a saúde pública”. Ele ainda lembrou uma questão importante: a abertura do espaço, a decisão de divulgação do anúncio, é dos donos dos jornais e não dos profissionais que trabalham na linha de frente combatendo diariamente esse tipo de informação inverídica.
Tai Nalon, em publicação da agência de checagem Aos Fatos, reforçou a importância da transparência para a escolha da veiculação de informes publicitários. A jornalista ainda reforçou que o “episódio demonstra que nenhum veículo ou mídia mantém o monopólio da virtude editorial”, sendo necessário também mecanismos mais rigorosos de combate a esse tipo de situação.
Leitores e seguidores da Folha de S.Paulo — que completa 100 anos de atividade em 2021 — também explicitaram opinião e indignação sobre o assunto logo após uma postagem do jornal em uma de suas redes sociais, compartilhada inclusive no dia em que o anúncio em defesa ao tratamento precoce foi publicado no impresso. Na legenda da publicação, o seguinte texto: “É preciso apontar as mentiras que autoridades estão dizendo. Isso se faz reforçando a ênfase no que é real em contraponto ao que é falso…”.
A resposta, ou melhor, as respostas, foram comentários como “sabe uma outra mentira? Tratamento precoce. Essa mentira mata. Não deveria ter espaço num jornal comprometido com a vida, o futuro e a verdade”, “uma outra mentira, tratamento precoce sendo divulgados no seu jornal, tudo por dinheiro né? Sem moral!”, ou “ok, mas… quanto custa a integridade da Folha? Quanto é mesmo meia página pró-cloroquina?” e por aí seguem outras inúmeras respostas.
Alguns dos jornais que publicaram o anúncio se pronunciaram a respeito, como Folha e O Globo, mas o fato deixou ainda mais clara a falta de diálogo entre a redação e o comercial das organizações. Se em um dia, esses veículos divulgaram informação falsa, no outro estavam desmentindo a publicação, tentando corrigir um erro que ao longo dos últimos anos têm combatido. Sem dúvida, desmentir o que foi dito não teve e não tem o mesmo impacto depois que a informação já está em circulando.
O resultado não poderia ser outro se não o estremecimento de uma relação de confiança que há anos vem se dissolvendo, conforme apontam Rodrigues e Aguiar (2020). Se nesse período de pandemia, os veículos conseguiram encurtar um pouco do distanciamento que vinha sendo perdido com o público, ações como essa permitem um retorno à desconfiança nos jornais e abre espaço para a desinformação.
Quanto custa a credibilidade de uma empresa jornalística?
Ao publicar um anúncio que traz informações falsas e justificar a partir de uma “liberdade de expressão comercial”, a organização acaba colocando seus interesses como prioridade e esquece do seu papel social. É deixado de lado um discurso de que o compromisso do jornalismo é essencial no combate à desinformação e reforçado um que defende o distanciamento entre o departamento comercial e as redações dos veículos de imprensa para justificar esse tipo de ação.
Em casos assim, não há o que se colocar numa balança: a prioridade deve sempre ser da redação, dos seus princípios éticos, evocando a construção de uma atuação vigilante, com informações relevantes, verídicas e úteis. Ao priorizar os ganhos do anúncio, entra em jogo a credibilidade desses veículos, como bem lembram Christofoletti e Paul na última newsletter divulgada pelo Observatório da Ética Jornalística em 24 de fevereiro.
Com a pandemia, a confiança em TVs e jornais impresso foi ampliada. Documento do MediaTalks sobre o impacto do novo coronavírus na mídia destaca que a imprensa tradicional foi a fonte mais utilizada na busca de informações confiáveis sobre a Covid-19. A notícia é boa, mas no Brasil — é importante pontuar —, 64% dos entrevistados disse que usava mais as mídias sociais para buscar informações e, em seguida, as principais organizações jornalísticas do país. Ainda assim, de acordo com o relatório, houve aumento de consumo de notícias produzidas e veiculadas por essas organizações tradicionais.
Essa retomada da confiança muito se deu pelo papel que os jornais vêm exercendo ao longo desse mais de um ano de enfrentamento à doença e à infodemia causada pelo excesso de informações, em muitas vezes distorcidas, associadas ao novo coronavírus. Ainda que a cobertura da situação do Brasil e do mundo, por parte dos meios de comunicação, gere um outro tipo de bombardeio de informações, é inegável que jornais e jornalistas assumiram seu papel, mais que necessários, de noticiar os fatos.
Foi justamente assumindo esse papel de tentar levar a realidade aos holofotes, que o jornalismo tem conseguido recuperar um pouco da credibilidade que vinha sendo perdida ao longo dos últimos anos. Jornalistas tiveram suas rotinas alteradas, com jornadas de trabalho ampliadas, saíram de um lugar comum e estabeleceram parcerias com colegas de profissão, sempre com o propósito de aumentar a cobertura e garantir acesso aos dados.
Os desafios externos às redações continuam e não são fáceis de serem enfrentados, mas nesse momento em que a própria organização contribui para dissipar a confiança existente no veículo é preciso refletir sobre os processos internos e as etapas que devem ser superadas para que a credibilidade não seja perdida.
Além de questionarmos às organizações jornalísticas por que resolvem publicar mentiras em formato de anúncio, devemos tentar estimulá-las a pensar a respeito: vale a pena trocar sua credibilidade por informes publicitários que desinformam e corrompem os princípios do jornal?
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Kalianny Bezerra é doutoranda em Jornalismo pelo PPGJOR e pesquisadora do objETHOS.