Nos últimos dias, o triste recorde de óbitos diários pela Covid-19, a recuperação dos direitos políticos de Lula e a entrevista coletiva concedida pelo ex-presidente foram os principais assuntos da agenda pública nacional.
Entre as muitas reações dos profissionais de imprensa sobre o retorno de Lula aos noticiários, a jornalista da GloboNews, Cecília Flesch, escreveu em um tuite: “E os adevogados?”.
Tratou-se de uma referência debochada sobre a pronúncia, supostamente incorreta, de Lula; típica do modo simples de falar da classe trabalhadora. No campo acadêmico, essa prática é conhecida como “preconceito linguístico”, que, segundo o professor Marcos Bagno, corresponde a todo juízo de valor negativo (de reprovação, de repulsa ou mesmo de desrespeito) às variedades linguísticas de menor prestígio social.
Isso significa que, para as classes mais abastadas, não basta o sentimento de superioridade econômica, é preciso reatualizar constantemente as diferentes formas de dominação simbólica, menosprezando os gostos musicais, modos de falar, vestimentas e comportamentos do povão.
Parafraseando uma famosa citação bíblica, “nem só de preconceito linguístico vivem os profissionais de imprensa no Brasil, mas de toda palavra que proceda de seus editores”. Conforme será apontado nas linhas abaixo, à medida que internautas retrucavam o tuite de Cecília, mais a jornalista global deixava transparecer o direcionamento político de seus patrões. Como já nos alertava o velho Backthin, todo emprego de signo é ideológico por excelência.
Devido a enxurrada de respostas negativas, Cecília Flesch apagou seu tuite no mesmo dia em que foi postado. “Deletei um tweet meu, porque voltamos ao extremismo. Não tô disposta pra isso”, justificou a jornalista, sem, em contrapartida, se desculpar pelo mal-estar gerado.
No entanto, já era tarde. Imediatamente, uma internauta disse, em tom irônico: “o print é eterno, fofa”. “Ai, como é bom exercitar aquele bom e velho preconceito linguístico branco e de classe média e depois largar”, completou outro perfil.
Em sequência, um internauta questionou: “Até ontem (9/3) tava tudo bem, né?”. Prontamente, Cecília reagiu: “Não, não. Só que temos, de novo, mais uma turma para bater na gente agora”.
Como já dizia minha avó, “para quem sabe ler, um pingo é letra”. Nessa fala, a jornalista da GloboNews recorreu à capciosa armadinha discursiva de tentar igualar esquerda e extrema direita. Em outros termos, apresentar Lula e Bolsonaro como duas faces da mesma moeda: o extremismo.
Ora, qualquer cidadão que conheça minimamente o cenário político nacional sabe que comparar Lula e Bolsonaro é, no mínimo, praticar um jornalismo mal-intencionado.
O ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que está muito distante de ser representante do pensamento progressista no Brasil, escreveu recentemente em sua rede social: “Você não precisa gostar do Lula para entender a diferença dele para o Bolsonaro. Um tem visão de país; o outro só enxerga o próprio umbigo. Um defende a vacina, a ciência e o SUS; o outro defende a cloroquina e um tal de spray israelense”.
Já em relação ao trecho “mais uma turma para bater na gente”, é importante pontuar as diferenças entre as críticas direcionadas à imprensa feitas pela esquerda e pela extrema direita.
A esquerda critica a grande mídia por causa do viés antidemocrático dos principais veículos de comunicação do país, conhecidos por suas participações em golpes de Estado, armações políticas, conchavos e manipulações.
Por outro lado, os ataques da extrema direita ao que chamam de “extrema imprensa”, inclusive com agressões a jornalistas, se deve, entre outros motivos, pelo fato de os profissionais da comunicação não compactuarem com suas inúmeras fake news, como o “kit-gay”, “mamadeira erótica” ou “tratamento precoce para Covid-19”.
Voltando ao imbróglio virtual provocado por Cecília Flesch, em outro tuite, a jornalista, tentando “justificar o injustificável”, escreveu: “Tudo bem. Vocês acham que eu errei. Ficou solto e dei margem a isso. Eu apenas ressaltei. Lula sabe falar para o povo. Se aproxima em cada detalhe”.
Se eu fosse adepto ao preconceito linguístico, destacaria que não se inicia frase com o pronome oblíquo átono “se” (sim, a classe média, que se acha muito culta, também erra). Mas a questão principal é a tentativa de rotular o discurso de Lula como “demagógico”, uma retórica estrategicamente pensada para atrair o apoio do povo.
Talvez Cecília Flesch não saiba, mas Lula, ex-retirante nordestino, veio das classes populares. A forma como se expressa reflete sua origem; diga-se de passagem, não é motivo de vergonha. Ao contrário da “esquerda acadêmica”, com seus discursos baseados em pronomes neutros, Lula utiliza uma linguagem de fácil acesso, por isso é uma autêntica liderança popular.
Em suma, a postagem infeliz de Cecília Flesch não é uma mera crítica a astúcia política de Lula. Também não foi uma ofensa apenas ao ex-presidente, mas a toda classe trabalhadora brasileira. Exemplo típico da mesquinharia das classes alta e média de nosso país. Esses “caboclos querendo ser ingleses” (como já cantava Cazuza) odeiam tudo o que minimamente remeta ao povo.
E não adianta apagar postagem. O estrago já foi feito. Recorrendo novamente a uma paráfrase, dessa vez uma conhecida citação do ator estadunidense Will Smith: “o racismo de classe no Brasil não está piorando, está sendo ‘printado’”.
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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.