Na semana passada, o jornal El País publicou uma matéria intitulada “Os estragos invisíveis da pandemia para mães solo”. Dias antes, o Jornal Nacional havia exibido uma reportagem na qual mostrava como mulheres chefes de família tentavam achar saídas para sustentar seus filhos dado que, muitas delas, antes da pandemia, trabalhavam em empregos informais ou em postos de trabalho que não “permitiam o home office”, como manicures, cabeleireiras, babás, diaristas, domésticas. De acordo com dados do IPEA e do IBGE, 45% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres; 63% deles, por mulheres negras que estão abaixo da linha da pobreza. Entretanto, seus problemas ainda são invisíveis. O destaque em letras maiúsculas do título da reportagem do El País citada acima é proposital. Não como crítica ao veículo, mas como reflexão sobre o “porquê” esses ainda são dramas invisíveis.
Nesse sentido, pensamos também sobre os espaços de cuidado e educação. Ainda em 2019, antes de nossas rotinas serem completamente alteradas, as mulheres já dedicavam, em média, 21,3 horas por semana a afazeres domésticos e cuidados, enquanto os homens, apenas metade disso (10,9 horas), de acordo com o IBGE. Desde o início da crise sanitária, essa sobrecarga só aumentou, mas por que está chamando atenção agora? Quem são as mulheres que foram impelidas a modificar seus hábitos e quem são as que tiveram as vulnerabilidades mais aprofundadas? É preciso considerar a naturalização e a socialização da função do cuidado entre as próprias mulheres e como isso incide de forma mais violenta sobre a vida de algumas especificamente, como migrantes, negras, periféricas, com deficiência.
A pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada em abril e maio de 2020, por meio da parceria entre a Sempreviva Organização Feminista e a publicação Gênero e Número, apresenta que metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém durante a crise sanitária da Covid-19. Nesse cenário, as mulheres negras são as que têm menos suporte nas tarefas de cuidado (54%); são a maioria entre as desempregadas (58%) e também entre aquelas em que a situação de isolamento social colocou a sustentação da casa em risco (55%). A sustentação cotidiana do ambiente doméstico refere-se a necessidades simples, como pagar as contas básicas e o aluguel, ter acesso a alimentos e medicamentos.
Enquanto atrizes são garotas-propagandas de copos coletores menstruais, muitas mulheres usam miolo de pão nas penitenciárias ou deixam de ir a entrevistas de emprego porque não podem comprar absorventes. Se a sobrecarga de atividades que atinge mulheres que tiveram de conciliar cuidado com parentes e home office já é algo inaceitável, o que dizer sobre as mulheres pobres e chefes de família que sequer têm alguém para “dividir” as tarefas e perderam seus trabalhos? O mote aqui não é começar uma disputa sobre quem sofre mais, mas refletir onde está o foco do problema ou como algumas realidades — apesar de violentas — ainda continuam invisíveis.
A grande imprensa, muitas vezes, ainda passa ao largo da realidade das periferias, personificada pelo “matriarcado da miséria”, como diria a intelectual e ativista Sueli Carneiro, que nos chama a atenção para o fato de que a pobreza tem gênero e raça bem definidos. Quando essas mulheres entram em pauta, ou é pelo exótico ou é pela caricatura vitimizada. E, com isso, reforça-se a invisibilidade estrutural desses corpos.
Um sopro de esperança e alento vem da imprensa alternativa. Coletivos de jornalismo e midiativismo que surgem nas periferias, com o objetivo de visibilizar o invisível, contar suas histórias, opinando e denunciando o que lhes agride e mata. Alma Preta, Ponte Jornalismo, Voz das Comunidades e Nós, Mulheres da Periferia são exemplos importantes dessas iniciativas.
Destacamos aqui o trabalho que o coletivo Nós, Mulheres da Periferia vem realizando ao longo da quarentena (que já dura mais de um ano). Em atividade desde 2014, as integrantes se autodefinem como “um grupo jornalístico formado por mulheres periféricas, cujas histórias e notícias são atravessadas pelos marcadores sociais de classe, raça e território”. O coletivo destaca que, na distribuição de cestas básicas, durante a pandemia, o que mais se vê são as mulheres na linha de frente, dispostas a ajudar ou necessitando de apoio. Entre os temas abordados nos últimos meses, estão o retorno às aulas presenciais, campanhas de arrecadação de alimentos, instruções de como solicitar o auxílio emergencial, situação das mulheres encarceradas, necessidade de implementação de políticas públicas em prol da preservação da vida, vacinação contra a Covid-19. A diferença não está apenas na escolha das pautas que viram matéria, mas na maneira como o valor notícia se dá: aqui, a fonte principal são as mulheres das periferias.
Enquanto a sobrecarga de trabalho e de responsabilidade, somada à fome e à falta de perspectiva de renda, ainda for um problema delimitado pelo gênero, pela raça e pelo local de moradia dos indivíduos, dificilmente será mais visível do que poucos espaços (“especiais”) de jornal.
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Viviane Gonçalves Freitas é jornalista e doutora em Ciência Política (UnB). Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem — Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, feminismos e raça. Instagram: @vivianegf14
Lucy Oliveira é jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Instagram: @lucy_olivr