Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O manifesto que contestou a morte de Herzog

Foto do Octávio com 25 anos como aparece na carteirinha da ABI (Foto: Arquivo Pessoal)

O jornalista Octávio Costa tinha 25 anos em 1976 e recorda o momento em que foi repassado, de redação em redação, o manifesto contestando a conclusão do Inquérito Policial Militar para apurar o “suicídio“de Vladimir Herzog. Quem liderava o movimento no Rio era a Associação Brasileira de Imprensa, na figura do seu diretor Mauricio Azêdo (1934-2013). E muitos jornalistas assinaram.

A ABI exercia uma liderança sobre a classe, o estagiário chegava na redação de qualquer órgão de imprensa e já era sondado, no primeiro dia, a se filiar, e assim materializava o espírito de classe. Começava a pertencer. Era a entidade que representava os jornalistas, pelo menos no Rio. O sindicato só dividiria a preferência alguns anos depois. A carteirinha de Octávio na ABI é de 1974, ele tinha 23 anos.

Talvez a coragem de assinar uma lista num período de terrorismo ideológico fosse ancorada nos 20 anos dos colegas mais jovens. Ou foi a revolta que o assassinato de Vlado provocou. A verdade é que um expressivo número de jornalistas assinou o manifesto, primeiro publicado com 450 assinaturas no dia 6 de janeiro de 1976 no jornal Unidade do Sindicato de Jornalistas de São Paulo presidido por Audálio Dantas.

E era preciso muita coragem: depois da morte de Vlado a 25 de outubro de 1976, o operário Manuel Fiel Filho foi preso, torturado e morto a 17 de janeiro acusado de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro.

No mês seguinte a lista de Herzog engordou mais ainda e foi publicada com 1004 assinaturas num anúncio pago pelos próprios jornalistas no Estadão.

Pouco depois todos foram visados, muitos fichados, alguns desaparecidos ou presos e torturados como o próprio Mauricio Azedo e o fotógrafo Luis Paulo Machado.

Ancelmo Góis foi obrigado a responder por suas atividades e, no ano seguinte, o próprio Octávio Costa foi “convidado” a se apresentar à 5a seção do Comando do Leste, ao lado da Central do Brasil, para descobrir que sua vida era um mar aberto e ainda ouvir um “conselho” de ”se afastar disso tudo” porque ”seu chefe Victor Civita poderia ficar sabendo e pedir a sua cabeça”.

Três anos depois de assinar o manifesto, em 1979, antes da anistia, Octávio se aproximava da Editora Abril na rua do Passeio no Rio, onde trabalhava, quando foi avisado pelos colegas que dois policiais do DOPS o aguardavam na redação. Octávio telefonou para o pai, Álvaro Costa, que era assessor de imprensa do BNDE. Ele o aconselhou a ir para a casa de amigos enquanto pediria ajuda ao irmão também jornalista, Odylo Costa, filho, que na época ocupava uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Odylo entrou em contato com o ministro da Justiça mas por precaução Octávio não voltou à redação, refugiou-se na casa de um amigo jornalista. Era pura intimidação. Em 1978, Octávio havia participado ativamente no movimento ‘Unidade e Ação’ que assumiu a direção do Sindicato dos Jornalistas no Rio. Um diretor do DOPS telefonou para ele no dia seguinte, dizendo que a presença dos agentes na redação da Veja à sua procura não era só para checar uma inconsistência nos registros da repressão. Só isso…

O histórico manifesto “Em Nome da Verdade” vai constar da 7a edição do livro “Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil” de Fernando Pacheco Jordão, incluindo pela primeira vez a lista com depoimentos de vários signatários colhidos há meses pelo jornalista Mauro Malin, que coordena o projeto com apoio do Instituto Vladimir Herzog.

Aqui, o depoimento de Octávio Costa sobre o momento da assinatura:

“A morte de Vladimir Herzog teve forte impacto na sucursal da Editora Abril no Rio de Janeiro. Muitos dos jornalistas que trabalhavam no prédio da Mesbla, na Rua do Passeio, ou eram filiados ao Partidão ou simpatizantes. Aristélio Andrade chefiava a revista Placar, Nelson Silva respondia pela redação da VEJA e Ancelmo Góis era repórter especial da EXAME. Todos eram amigos de Maurício Azêdo, responsável pelas atividades culturais da ABI.

O presidente da ABI, Prudente de Moraes Neto, era um jornalista de perfil liberal. Naquela época, a entidade tinha grande prestígio e, com a OAB e a CNBB, estava na linha de frente da luta pela volta da democracia. Prudente deu carta branca a Maurício Azêdo para editar o “Boletim da ABI” e também criar o Cineclube Macunaíma (lá, pela primeira vez, assisti aos filmes de Eisenstein). Eventos políticos e ciclos de palestras também ficavam na órbita de Azedo e reuniam muita gente.

Com a morte de Herzog, ficou claro que os jornalistas ligados ao Partidão (Partido Comunista Brasileiro) estavam na alça de mira da repressão em todo o país. Mas a direção da ABI não se deixou intimidar e se uniu ao presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Dantas, na denúncia contra o assassinato do diretor da TV Cultura.

Quando o abaixo-assinado em resposta às mentiras do IPM sobre o assassinato de Herzog chegou ao Rio, em janeiro de 1976, o documento correu de mesa em mesa na sucursal da Abril e recebeu o endosso de todos os jornalistas que estavam na redação. O clima era de comoção. Havia pressa. E tínhamos de assinar com o nome completo, para que não houvesse dúvida sobre a autenticidade da lista. Eu tinha 25 anos, era repórter de economia da VEJA, colaborava com o “Boletim da ABI”, e não pensei duas vezes. Não me lembro se alguém deixou de assinar por temer as consequências. Mas havia grande tensão, com muitos dirigentes do Partidão desaparecidos.

Apesar da repercussão do caso Herzog, o operário Manoel Fiel Filho foi morto no dia 17 de janeiro no DOI-Codi em São Paulo, em circunstâncias idênticas. Os torturadores também forjaram um suicídio. O comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila Melo, foi afastado por Ernesto Geisel, mas a repressão ao PCB continuou. Pouco tempo depois, Maurício Azêdo e o fotógrafo Luiz Paulo Machado foram presos e torturados no Rio, sob a acusação de formar uma base comunista na ABI. O processo correu na Auditoria do Exército e incluiu Ancelmo Góis e Anderson Campos, que responderam em liberdade. Ao fim, todos foram absolvidos.

Pode ter sido coincidência, mas Azêdo, Ancelmo e Anderson assinaram o documento que exigiu a verdade sobre o assassinato de Herzog”.

***

Norma Couri é jornalista.