Nos 130 anos de fundação do JB, em 9 de abril, registros de seus dias de apogeu e dos atuais
Em 1965, o Jornal do Brasil encomendou um documentário ao jornalista e cineasta Nelson Pereira dos Santos, um de seus redatores. O filmete Jornal do Brasil, um moço de 74 anos reúne imagens preciosas da rotina na redação, desde a primeira edição do Repórter JB. “Na Avenida Rio Branco, 27 graus, 64% a umidade relativa do ar. Washington: o Congresso dos Estados Unidos aprovou hoje lei de redução geral dos impostos. Paris: o correspondente do Jornal do Brasil informa que o general De Gaulle iniciou os preparativos de sua viagem ao Brasil”, informa o locutor Alberto Curi. A voz em off reafirma a tradição do jornal, relacionando sua origem aos valores da imprensa: “Desde o seu primeiro número, de 9 de abril de 1891, o Jornal do Brasil mantém a tradição de discutir as questões do país com inteira isenção e independência, fiel às palavras de seu fundador, Rodolfo Dantas”.
O fluxo de produção prossegue: repórteres nas ruas e depois nas Olivettis, redatores fazendo títulos, paginadores desenhando a edição, as matérias entregues à oficina, gráficos compondo títulos e textos letra por letra, em tituleiras e linotipos. “Duzentos operários especializados realizam a tarefa industrial que envolve a edição do jornal”. O filme termina com pequenos jornaleiros carregando os feixes para distribuir nas bancas a tiragem de 100 mil exemplares, e com uma edição extraordinária do Repórter JB (sobre o sequestro de Frank Sinatra Jr., a caminho do Brasil), indicando que o jornal nunca para, num eterno recomeço.
No ano seguinte, o JB foi tema de reportagem de sete páginas na Realidade, revista que também faria história. Em “A aventura da notícia: 24 horas na vida de um jornal”, o repórter Luiz Fernando Mercadante e o fotógrafo Nelson di Rago acompanharam um dia na redação, mostrando bastidores daquele acontecimento que era o JB. Mercadante narra o percurso do chefe da pauta, Fernando Gabeira, 25 anos, de Copacabana ao Centro, de ônibus. Na redação, ele lê os recados do plantonista da madrugada, a agenda e todos os jornais: “Atenção para Roberto Carlos, entrincheirado em seu apartamento do Leme Palace Hotel, para fugir do assédio das garotas. Foi requerida a falência de Dom João de Orléans e Bragança, da família real brasileira. Atenção para o Festival do Chope que começa amanhã e promete recorde de consumo. Ainda não demos foto do pessoal que vai ser despejado da Presidente Vargas”.
Realidade vai apresentando, um a um, editores, repórteres, redatores, editorialistas, revisores, os homens e mulheres que faziam o jornal. “Aquele repórter magrinho, escondido atrás da máquina de escrever, é o responsável pela campanha que obrigou um parque de diversões a mudar-se do Aterro, em frente ao Morro da Viúva, onde colocaria em sério risco a vida de seus frequentadores que, para atingi-lo, teriam que atravessar pistas de alta velocidade. O repórter chama-se Jorge Rosa e tem 23 anos. Mudou um parque de diversões inteiro de lugar e não é nenhum super-homem. É só um repórter”. Outro furou o cerco policial à Embaixada do Uruguai, onde estava o acusado de um atentado ao presidente Castelo Branco. Pôs um cachimbo na boca, disse que era do Itamaraty e entrou.
O editor-chefe, Alberto Dines, é apresentado como “o homem que faz o jornal”. Gentil e elegante, fluente em seis idiomas e professor de Teoria de Comunicação na PUC-Rio, iniciara carreira na revista Visão e já havia sido secretário de redação de Manchete, Última Hora, Diário da Noite e Fatos e Fotos. “Dines está no cargo há cinco anos e, nesse tempo, preocupou-se em criar uma redação e um sistema cada vez mais capazes de produzir um bom jornal […]. Sua missão é extrair todas as potencialidades do barco cujo comando lhe entregaram”.
A tripulação era composta de 50 repórteres no Rio, sucursais em Brasília, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e Niterói, correspondentes em quase todas as outras capitais, 12 redatores de Internacional (alguns se especializando: dois em América Latina, um em África, um em Ásia, um em Inglaterra, um em Europa Ocidental), dez redatores no Departamento de Pesquisa, criado “para dar subsídios à reportagem geral e produzir reportagens de fôlego sobre temas que exijam grandes levantamentos e estudo”, e 14 copidesques eram responsáveis pela qualidade dos textos, lapidando títulos, aberturas ou mesmo reescrevendo tudo.
Além do glamour da redação, é enfatizada a organização empresarial: “O JB é possivelmente o único jornal do país que conhece precisamente todos os seus números e, tanto quanto possível, os números dos seus concorrentes. E é, certamente, o único que sabe o seu custo real, dia a dia, página a página, palavra por palavra. Cada palavra que se lê no JB custou à redação 560 cruzeiros. E prontinha, isto é, impressa, chega a 830”. O jornal vendia então 65 mil exemplares diários e 180 mil aos domingos. “Os classificados chovem nos balcões, as agências se afeiçoaram ao jornal”, escreveu Mercadante.
Em abril de 1971, ao completar 80 anos, foi publicado o Jornal do JB, um caderno especial de 16 páginas. A capa foi diagramada em L, com o expediente completo do jornal circundando a manchete: Um dia em 80 anos. O texto registra que trabalhavam na empresa 1.561 pessoas, sendo 1.398 na sede, dos quais 262 jornalistas, além de 163 espalhados por sete sucursais, 13 correspondentes espalhados pelo país e sete no exterior (Bonn, Londres, Nova York, dois em Paris, Roma e Tel Aviv). Em 1970 o jornal havia publicado 9.525 páginas de notícias e 8.556 de publicidade, com 41,5% de participação no mercado publicitário da Guanabara. Os classificados naquele ano corresponderam a 5.326 páginas completas. A tiragem era de 112 mil exemplares de segunda a sábado e 205 mil aos domingos, com distribuição para todo o país e ainda em Nova York, Paris e Lisboa. E se projetava para o futuro: “‘A ordem nesta casa é não parar. Ainda temos muito o que fazer’. As palavras da condessa Pereira Carneiro sintetizam o espírito que anima a todos que trabalham no Jornal do Brasil”.
Corta.
Sexta-feira 7 de fevereiro de 2020. Foi uma manhã nublada mas abafada, em torno dos 28 graus em Niterói. Numa rua do bairro do Ingá que concentra bares e casas noturnas, estreita e movimentada como a da primeira sede do Jornal do Brasil, a Gonçalves Dias, no Centro do Rio, o jornalista Marcio Affonso Gomes começou sua rotina diária às 5h. Leu o noticiário, decidiu o que merecia destaque e atualizou a capa do JB Online. Foi nadar e retomou o trabalho em casa, até às 20h25: “Estou fazendo o site sozinho, sem tempo pra nada”, contou na entrevista que me concedeu no meio do dia. Gomes é o “Jornal do Brasil”.
Editou e publicou naquele dia 26 notícias, a partir de conteúdo das agências Brasil, FolhaPress e Reuters, avisos de pauta de assessorias e artigos de colaboradores. O dia foi cheio: brasileiros aguardando resgate na China fechada pela descoberta do novo coronavírus, o ministro da Economia chamando servidores públicos de “parasitas”, a tragédia no centro de treinamento do Flamengo completava um ano com depoimentos de parentes em uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Mas no JB de 2020 não há a quem designar pautas: “Consigo apurar alguma coisa, mais as agências”.
Gomes começou a carreira como estagiário e repórter do caderno JB Niterói, entre 1988 e 1990, na Avenida Brasil 500. Já não era a redação com centenas de repórteres, dezenas de revisores e de correspondentes no país e no exterior e uma frota de carros de reportagem. Mas ainda então “todo mundo queria trabalhar no JB”, destaca, porque “na redação só havia estrelas do jornalismo”. Leitor assíduo e apaixonado de Zózimo, foi colunista social, por 20 anos, na Tribuna da Imprensa. Trabalhou também na Última Hora, nas revistas Contigo, Elle e Caras e na Folha Universal, da qual foi diretor de redação, e em 1992 fundou a Mago Ideias, empresa de comunicação que edita jornais, sites e páginas de redes sociais como Guia de Búzios, Agora Niterói, Icaraí Aqui e Decora Campos e o site O Chic do Rio. Enquanto isso, o JB foi sucumbindo, por erros de gestão, e saiu de circulação em 2010, depois de arrendado pela família Brito ao empresário Nelson Tanure, que manteve o Online, em estrutura mínima.
Relançado nas bancas pelo empresário Omar Catito Peres em fevereiro de 2018, o JB saiu de circulação, de novo, um ano depois. O jornal contava então com cerca de 40 jornalistas, demitidos sem receber, até hoje, as rescisões e salários atrasados. A nova redação que havia sido montada na Avenida Rio Branco 53 foi transferida para a sobreloja de um dos restaurantes de Catito, o Olivetto, na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Foi onde Gilberto Menezes Côrtes, então editor-chefe e vice-presidente do JB, me recebeu em agosto de 2019. “Os salários continuam atrasados, mas pelo menos o pessoal tem almoço aqui”, disse, constrangido, sobre os seis funcionários que restavam então para produzir o JB Online, com notícias de agências. Márcio Gomes era um deles. Mas logo Catito dispensou os demais, e Gomes assumiu sozinho o JB Online, em home office.
“É complicado, mas apaixonante. Trabalho online há tempos, também sou programador e, por gostar bastante, não fico cansado. E, podendo não sair de casa, pegar esse trânsito louco do Rio, é uma dádiva”, me disse, sem imaginarmos que isso se tornaria tão comum na pandemia. Antes, reunia-se com o empresário uma ou duas vezes por semana, no Bar Lagoa ou na Fiorentina, e despacha por telefone no dia a dia. “Jornalismo é oposição, olhar crítico”; “é liberdade total”, disse sobre a linha editorial. “O assédio é forte. Assessorias, políticos etc. Todo mundo quer aparecer no JB, né?”, completou o editor, que, além da produção jornalística, monitora os acessos. “A audiência não cai, por incrível que pareça”. Era fevereiro, mas ele citou os dados do mês de dezembro: 5 milhões de page views. Pedi atualização, mas não respondeu.
No JB Online, seu nome não aparece — não há expediente, e a autoria dos textos é invariavelmente “por Jornal do Brasil”. Perguntei a Gomes se ele pensa: “Sou eu que ponho hoje na praça uma marca histórica da imprensa brasileira”. Ele respondeu: “Não dá tempo para pensar. Não sou vaidoso, o cavalo passou selado e eu montei, como diria o velho Brizola. É viver um dia após o outro e ir levando. Não tem comparação. Aquele tempo não volta mais. Tento só fazer o melhor trabalho”. E voltou às suas ocupações, como que seguindo o lema de outros tempos: “A ordem nesta casa é não parar”.
Trechos adaptados do livro JB, um paradigma jornalístico (Autografia, 2020, 350 páginas), disponível nas livrarias Blooks (com dedicatória) e Galileu, entre outras.
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Itala Maduell Vieira é jornalista, doutora em Comunicação e professora de Jornalismo da PUC-Rio.