Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo na era das incertezas

Foto: Obi Onyeador/Unsplash

A pandemia de Coronavírus colocou dramaticamente em evidência talvez o maior de todos os dilemas enfrentados pelo jornalismo desde a introdução das tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs). Nós, os profissionais, estamos inseguros diante da escolha entre seguir a norma tradicional de observar imparcialmente o crescimento incessante da mortalidade, ou nos envolvermos na luta contra a doença e todos os problemas que ela provoca na economia e na política do país.

Não é uma decisão fácil porque ela esbarra em décadas de rotinas, regras e valores entranhados no exercício da profissão. Além disso, a pandemia integra um contexto em que nosso modo de vida está sendo sacudido pelas consequências e desdobramentos da generalização das TICs no dia a dia de quase 2/3 da população mundial. Pode parecer um exagero, mas é possível dizer que enfrentamos uma “digitalização” da pandemia.

Noutras palavras, está ocorrendo uma soma de efeitos desestabilizadores. Se por um lado, a letalidade e globalização da Covid-19 espalham medo e inseguranças, por outro, a massificação das ferramentas digitais de comunicação e informação ampliam o efeito devastador da pandemia, o que acaba afetando diretamente tanto os jornalistas como as pessoas que leem jornais, revistas, usam redes sociais e assistem telejornais.

E como se tudo isto não bastasse, é preciso levar em conta que os jornalistas passam pelo trauma de assistir uma profunda transformação em seu ambiente de trabalho, com o fortalecimento da precariedade dos laços empregatícios, com o desaparecimento gradativo das grandes redações, das garantias funcionais como férias anuais, descanso semanal, fundo de garantia, assistência médica e aposentadoria especial. Tudo isto configura uma atividade cada vez mais individualista, transitória, autogerenciada e dependente de um mercado consumidor de notícias mais competitivo, congestionado e volúvel.

O individualismo coletivo

Todas as garantias sociais antes existentes estão sendo rapidamente terceirizadas e transferidas para o orçamento pessoal dos profissionais. Estamos começando a viver uma realidade que alguns definem como individualismo coletivo ou em rede, onde somos puxados para dois extremos. Se por um lado a viabilização financeira de projetos multimídia impõe uma socialização dos sistemas de produção jornalística, por outro, obriga os profissionais a arcarem individualmente com os custos sociais da sua atividade.

O cenário de médio prazo é complicado e, acima de tudo, preocupante. Já passamos pela fase do aprendizado e familiarização com as novas tecnologias, agora formos empurrados para a difícil adaptação às consequências das inovações que mudaram profundamente a forma como o jornalismo é pensado e exercido. Nossa cabeça ainda funciona pelos padrões convencionais, mas o dia a dia nos lança numa realidade para a qual ainda não criamos os comportamentos, normas e valores adequados.

Questões como novas formas de remuneração, novas regras para direitos de autoria, exigência permanente de aferição de credibilidade, trabalho colaborativo, engajamento com o público, produção multimídia e mutabilidade dos grupos de trabalho são temas sobre os quais ainda vamos ter que discutir, pesquisar e pensar muito. Mas a pandemia não pode esperar que os jornalistas consigam uma mínima convivência com as incertezas que os cercam quotidianamente.

A tudo isto se soma o dilema entre observar e/ou agir colocado diante dos profissionais por conta do agravamento da Covid 19. A tradicional postura de imparcialidade e isenção está sendo atropelada pela realidade, como mostra a estratégia editorial dos telejornais da Rede Globo. A emissora tomou partido e esta opção, a exemplo da que foi tomada por jornais como a Folha de São Paulo, não é mais neutra diante do governo Bolsonaro.

Trata-se de uma estratégia política das empresas estabelecida em função de compreensíveis interesses corporativos, mas que está divorciada do discurso da imparcialidade e isenção que elas próprias cobram de seus funcionários por meio dos manuais de redação. Em situações normais, a dicotomia entre posições políticas e as normas redacionais passa desapercebida na dinâmica frenética das redações. Mas quando um vírus gera um caos social, como o que estamos vivendo, a diferença salta aos olhos de todos os profissionais do jornalismo, alimentando muitas incertezas.

Texto publicado originalmente na plataforma Medium.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.