Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A universidade, o jornalismo e os afetos políticos

Na mesa de abertura de um importante evento acadêmico de Comunicação e Política, ainda em 2019, uma seleção de intelectuais dessas áreas de conhecimento constatava, com certa decepção, a falência das ferramentas teóricas, metodológicas e analíticas para antecipar o quadro político desastroso que vinha se desenhando desde a substantiva queda de popularidade do governo Dilma, o golpe jurídico-parlamentar de 2016 e a reascensão do populismo de direita representada por Bolsonaro, seus empresários, pastores e militares — o que culminou, hoje sabemos, em uma crise sanitária sem precedentes.

Entre as mídias e jornalistas não se pode dizer que houve essa mesma honestidade intelectual. Os mesmos que, desde 2002, fizeram contra os governos do PT uma cruzada ética em nome de uma política livre da corrupção, hoje alegam “autonomia crítica” para lidar, de modo ironicamente discreto, com a completa incapacidade de governabilidade do Presidente da República e de seus gabinetes do ódio, da farda, do dinheiro e dos templos — além do próprio Congresso Nacional, entregue às elites agrária, religiosa e político-econômica. Sem falar, obviamente, nas mídias e jornalistas que continuam cúmplices do projeto político totalitário e genocida em que acreditam.

Dois castelos, portanto. De um lado, a universidade constrói um capital cultural e intelectual engessado, circunscrito às burocracias acadêmicas, na maioria das vezes incapaz de ir extramuros tanto para conhecer quanto para partilhar e dialogar. Do outro, uma classe profissional precarizada e formada na “escola das redações”, com alguns dos seus alçados à condição de prestigiados formadores de opinião em razão da superficialidade retórica de seus trabalhos. Não é por acaso que as universidades e a imprensa se veem desacreditadas pela própria sociedade civil, além de injustamente atacadas pelas milícias digitais.

Entre os tantos diagnósticos construídos a posteriori para nossa crise política (com seus desdobramentos sanitários, econômicos e culturais), um dos mais pertinentes diz respeito à negligência epistemológica aos afetos políticos, historicamente expurgados da maioria das teorias políticas e mesmo dos estudos em jornalismo. Nas redações, por sua vez, impera a falsa impressão de que as paixões têm uma função meramente retórica, estando restritas aos apelos compassivos, à exploração da violência, à exaltação de celebridades e desportistas. Entretanto, se hoje mal conseguimos acompanhar o noticiário é porque batemos todas as cotas de indignação, desapontamento, tristeza. E se somos compelidos a admitir publicamente aos nossos alunos e colegas que falhamos em identificar tamanho retrocesso político-institucional, é porque ignoramos solenemente o protagonismo dos afetos em nosso destino político.

Não se trata apenas de diagnosticar que vivemos um tempo de paixões tristes, para citarmos Espinosa sobre os afetos que nos imobilizam, refreiam nossa potência de agir e reagir. Não deixamos de nos indignar com as injustiças, discriminações, violências e negligências. A questão parece ser, na verdade, a da constatação de que os afetos políticos não são de ordem individual, privada, mas, sim, construídos publicamente, coletivamente, a partir de uma experiência social marcada por narrativas, imagens e discursos que nos chegam 24 horas por dia, seja nas grandes mídias, seja como mensagens privadas. Discursos que reproduzimos, fazemos circular.

Estamos falando de uma engenhosa gestão dos afetos políticos, por muito tempo ignorada em favor da dimensão racional dos processos políticos e jornalísticos. Gestão operada com a cumplicidade do trabalho midiático, sedento pelos posicionamentos “lacradores” e pelas cortinas de fumaça usadas para recobrir “a passagem das boiadas” e para emplacar manchetes e chamadas. O que é a criação de um “mito” senão o apelo compassivo e estratégico à figura de um messias que nos salvaria das agruras de governos marcados pelos escândalos meticulosamente midiatizados de corrupção?

Criou-se, no Brasil, um complexo esquema de mobilização de afetos: a convocação ultranacionalista da esperança, a admiração apaixonada pelo líder, a raiva ressentida aos inimigos políticos e morais, o medo diante da ameaça espiritual “anticristã”, o imperativo meritocrático de resiliência e antivitimismo, o ódio misógino, homofóbico e racista. Com a complacência midiática, instituiu-se uma atmosfera de crise permanente, alimentada por ações e condutas que servem de aceno aos aliados e, principalmente, de provocação aos inimigos. E, com isso, são mobilizados outros afetos políticos: a angústia impotente frente ao poder totalizante, o asco pelo descaramento e cinismo das autoridades políticas, a ansiedade diante dos retrocessos publicamente defendidos, a dor pelas perdas.

Os processos de estetização da política, constatados de diferentes maneiras por figuras como Ernst Bloch, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Guy Debord, pareciam ter chegado a um ápice na Segunda Grande Guerra, mas alcançam, atualmente, um patamar totalmente diferente. Vivemos em uma sociedade de processos midiatizados, com amplo acesso à informação, à educação, e experiências democráticas mais longevas (embora não exatamente consolidadas e maduras). Isso significa que os projetos antidemocráticos, para se concretizarem, precisam não apenas de um verniz democrático, mas de uma atmosfera afetiva que lhes dê sustentação e justifique suas investidas, suas austeridades, suas perseguições, sob a forma dos sacrifícios pela nação e em nome do divino.

O mais irônico — e triste, diga-se — nessa dificuldade em lidarmos e entendermos o vínculo direto entre o poder político e a gestão dos afetos políticos é que as consequências são vividas diretamente tanto pela universidade quanto pelo jornalismo, inimigos históricos dos governos autoritários, bem como da significativa parcela da sociedade civil que os legitima. Isso deveria reivindicar, no mínimo, uma mudança radical de posturas: a derrubada dos muros desses castelos, para que seus atores deixem de se esconder atrás do pedantismo acadêmico e da imparcialidade cínica e/ou ingênua da imprensa. Se os últimos anos nos ensinaram alguma lição, certamente foi a de que o protagonismo na política está nas mãos de quem opera e faz a gestão mais eficaz das paixões políticas.

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Leandro R. Lage é vice-coordenador do GT Comunicação e Sociedade Civil da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Estética e Política (Cepolis/CNPq); é docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM) e da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal do Pará (UFPA); é doutor em Comunicação e Sociabilidades Contemporâneas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).