Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os jornalistas de ontem e de hoje

O nosso comentarista, o dentista Hugo Mota, de Natal, RN, nos indicou um artigo curto sobre o julgamento de Sócrates (cache do Google). É uma visão interessante do que consideramos o escrito jornalístico, e o jornalismo atual. No passado remoto, não existia esta profissão como tal, e tal atividade ficava na mão de escritores que desempenhavam várias funções. Historiador, mitólogo, relator épico, poeta, místico, narrador, etc., que cumpria este papel social entre aqueles que sabiam ler. A maior parte do trabalho jornalístico, de contar novidades, histórias e tradições se davam pela via oral. Estes relatos, por motivo óbvio, se perderam na poeira do tempo e jamais serão conhecidos.

A outra parte, a escrita, também se perdeu pelo decorrer do tempo, sendo carcomidos, ou sendo destruídos em acidentes e por intenção manifestas. Ficaram algumas narrativas gregas e romanas preservadas principalmente entre os árabes, no Iraque atual, depois redistribuída para o ocidente conhecer novamente. A fidelidade dos narradores nunca foi uma marca. A função de jornalista se misturou até hoje a uma função íntima com a publicidade e com a versão desejada por quem pagava o trabalho. Heródoto (484 AC-420 AC) foi o primeiro grego a tentar uma narrativa mais limpa, mas fidedigna, e que visitou muito dos locais que escrevera sobre fatos ocorridos. Esta não era a norma, e a fidelidade com os fatos não eram normalmente atingidos, pois o principal objetivo era a propaganda. Elevar o nome do deus, da cidade, do herói, do soberano, do povo. E, para isto, não se media a veracidade do narrado e sim o objetivo a alcançar. A mentira é piedosa. O que custa mentir se o objetivo é salvar o outro? Mesmo porque a maioria não tinha uma segunda narrativa, e nem que tivesse, carecia de meios fáceis de verificar os fotos narrados.

Isenção na análise

Assim, quando mencionei Sócrates, o filósofo ateniense, fica difícil de fato discutir o ocorrido. ‘Sócrates foi acusado por Meleto, Aniton e Lícon de não reconhecer os deuses da cidade, introduzir novas divindades e de corromper a juventude. A ação intentada contra Sócrates era uma graphaí asebeias, de uma graphaí, de uma ação pública ação de impiedade. Acusavam-no de pretender ‘que o sol é uma pedra e a lua uma terra.’ Qualquer ‘manifestação de dúvida ou de indiferença a respeito da religião da cidade era considerada um atentado à unidade da comunidade, e não é por acaso que a impiedade, a asebeia, uma ofensa aos deuses, era passível de uma graphaí, de uma ação pública.’ ‘Piedade (hosion) é o que agrada aos deuses; impiedade (anosion) é o que não lhes agrada.’ Para os acusadores, Sócrates negava a existência dos deuses, relata o artigo.

Diopites, talvez cerca de 430, propôs um decreto (psephisma), segundo o qual quem não acreditasse nos deuses ou ministrasse ensinamentos sobre fenômenos celestes, seria sujeito a um processo de eisangelia (denúncia pública). O âmbito de aplicação do decreto sugere que visava de forma objetiva filósofos cientistas como Anaxágoras e Protágoras. Representaria a primeira tentativa legal de alargar a incidência jurídica da asebeia, de maneira à nela incluir também a expressão de idéias ateístas, além das práticas rituais consideradas ímpias. Quem eram os deuses da cidade que se deveria morrer se não se acreditasse? Quem eram estes deuses que não se podia pregar por outros? Nada de novo até nossos dias.

Mas três Sócrates há, se é que existiu um Sócrates histórico. Aristófanes, Xenofonte e Platão retrataram a célebre figura. Assim como ocorreria hoje, os três narradores descrevem uma pessoa diferente e interpretam os fatos de modo diverso. Impossível chegar a verdade. Além de três visões, os três usam Sócrates para si. Usam para se apoiar na figura do filósofo para muitas vezes colocar na boca de Sócrates o que eles querem dizer na verdade. Não se pode realmente ter uma isenção na análise a não ser simbólica. São fábulas tentadas vender como algo a mais.

Purificação do povo romano

Assim ocorre com os evangelhos que são escritos muito mais tarde, mas que possuem a mesma dificuldade com os jornalistas que o escrevem. O nome já é de apelo jornalístico publicitário: Evangelho significa boa nova ou boa mensagem. Não podemos afirmar a data, e muito provavelmente não foram escritos por eles. Mas por escribas que usaram nos seus textos os nomes de pessoas mais importantes para que fossem acreditados. Narrando o que o escriba entendia da mensagem a que ele desejava promover. Também não possui uma narrativa fiel, sendo mais destinada a propaganda do que para alguma narrativa história real. Não visava contar, mas convencer sem deixar o leitor julgar.

Mais marcante é que a maioria dos relatos foi descartada e mandada queimar para que se forjasse uma idéia de que havia uma narrativa coerente e de aspecto histórico, para levar o leitor à falsa idéia de que estava lendo aquele relato jornalístico como isento de manipulação. Os quatro evangelhos considerados oficiais sofreram todo tipo de corte, edição e enxerto de modo a se enquadrar nos planos de Constantino I no Primeiro Concílio de Nicéia que ocorreu durante o seu reinado, o primeiro a aderir ao cristianismo, em 325. Os evangelhos sinópticos: Marcos, Mateus e Lucas. Aqueles que são prováveis cópias um do outro por escribas que fizeram algumas alterações, mas que resultam de uma cópia da narrativa com enxerto. Apenas uma cópia teria deixado palavras, frases e seqüências de fatos narrados de igual maneira.

Assim vemos a sua função jornalística contaminada totalmente pelo objetivo publicitário, como era comum nos textos da época. E que encontramos narrativas incoerentes e fantásticas, de milagres facilmente descritos para vender a mensagem, sem, no entanto, preservarem uma narrativa factual. Um pequeno exemplo é a defesa injustificável de Pôncio Pilatos, prefeito local, insistentemente inocentado, quando na verdade o mesmo era o invasor, o comandante de ocupação que tinha olhos para Roma e, na época dos escritos, já tinha sido destruído pelos romanos o templo de Jerusalém, em 70 D.C.. O que facilmente permite dizer que Jesus mítico profetizara o que já ocorrera. Mas o que chama a atenção é a insistente defesa dos romanos. Dá-se a Pilatos uma preocupação com uma pessoa sem a mínima importância social e que estava fazendo agitação justamente na época da páscoa judaica. Teve dia que ele mandou crucificar 500 judeus num dia. Não é coerente que se preocupasse com um agitador anônimo entregue pelas autoridades judaicas de incitar a impiedade. Quem faz a apologia de Pilatos escreveu depois da sua morte conhecendo o seu caráter e destes fatos terríveis já ter sido praticado. Não é muito crível a sua insistente tentativa de salvar o que ele podia fazer. Mas para quê? Mandando vir a água, lavou as mãos perante o povo, dizendo: ‘Eu sou inocente do sangue deste [justo]; fique o caso convosco!’ (Mateus 27:24) Não existia este costume entre os romanos. Lavar as mãos quer no sentido de inocência ou quer no sentido de higiene antes as refeições são preceitos bíblicos e judaicos ( Dt 21:6-7;Sl 73:13; Mt 15:2). Pilatos não se justificaria por preceitos judeus, pelo povo conquistado. A purificação pelo sangue. Diz o narrador que eles responderam: ‘Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos’ v. 25. numa típica propaganda anti-judaica colocada depois da diáspora. Uma purificação do povo romano, para o qual se dirigia os evangelhos.

Genocídios necessários

Lavar as mãos, quer no sentido de inocência ou quer no sentido de higiene antes as refeições, são preceitos bíblicos e judaicos ( Dt 21:6-7;Sl 73:13; Mt 15:2). Não era entendimento romano. Assim como a simbologia de purificar pelo sangue os altares e os ambientes impuros que se alega que o cordeiro de Deus fez tirando os pecados do mundo, ao escolher o seu novo povo. Escolhendo o Islã posteriormente.

(Levítico 14,14) O sacerdote tomará do sangue do sacrifício de reparação, e pô-lo-á na ponta da orelha direita do homem que se há de purificar

Há uma proposital transferência de culpa do invasor romano para o povo judeu.

Nesta breve crítica ao jornalismo e ao narrador que usava esta forma e esta função já na mais remota antiguidade, encontramos narrativas fantásticas e sem possibilidade de realidade, como o mito ensinado nos catecismo da Arca de Noé. Existem dez mil espécies de aves no mundo e nenhum criadouro atual possui este número aproximado. O objetivo era amedrontar com a ira dos deuses e não narrar algo que ocorrera mesmo. Outro fato incrível é a defesa desbriada dos genocídios bíblicos.

O que eles ensinam no Brasil nas escolas confessionais é isto: seria perverso o Deus do Antigo Testamento? Site do jornalista Michelson Borges ou aqui, no site do teólogo Douglas Reis.? Sobre o ensino sobre genocídios necessários ensinados a crianças, leia ‘A destruição dos cananeus‘ e ‘Um Deus sanguinário?

Barbarismo e intolerância

A mente bíblica é capaz de exercícios mirabolantes para validar como revelação um artigo de qualidade jornalística apenas. Justifica que Deus é bom, e que erradas eram as pessoas que, por conveniência ou cobiça, os judeus teriam exterminado da face da Terra. O alegado coração caridoso vê uma necessária ação genocida em nome de Deus, que o homem não deve vacilar, como não vacilou Abraão ao sujeitar seu filho como oferenda. Deve aderir, como diz o papa Bento 16: ‘A interpretação das Sacras Escrituras não pode ser somente um esforço científico individual, mas deve ser sempre confrontada, inserida e autenticada nas tradições viventes da Igreja.’

Este esforço irracional de justificar se esmera em tortuosidades: ‘O geneticista Michael Skinner, da Universidade de Washington, em que ratos foram expostos a um tipo de inseticida. A substância causou a metilação de dois genes relacionados à produção de esperma e os animais passaram a produzi-lo em menor quantidade. A deficiência se perpetuou por quatro gerações (interessante que Êxodo 20:5 menciona Deus `visitando a iniqüidade´ dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração, numa alusão às conseqüências do pecado; mas abençoando até mil gerações daqueles que seguem Seus preceitos)’ em Michelson Borges, em 28/4/2009, ‘Estilo de vida conta mais que herança genética‘.

Mas o interessante é que arqueólogos israelenses não têm encontrado, nos sítios em que habitaram os cananeus, sinais de lutas e guerras para justificar o seu desaparecimento na região. Mais provável tenha sido por dificuldades e alterações climáticas que sua civilização ruiu e acabou sendo incorporada por aqueles que chegavam pobres e miseráveis vindo do cativeiro do Egito. Na verdade teria havido uma assimilação dos mesmos e não uma eliminação física literal. São as conseqüências de se fazer esforço num trabalho jornalístico para provar que o mesmo é uma verdade antiga inconteste. Pode-se perder a alma defendendo a morte de milhares assassinados cruelmente e que talvez nem mesmo tenha ocorrido na história, não passando, como outras passagens da Bíblia, como pura propaganda interna. Uma falsa narrativa épica de um povo fraco de se autopromover como um povo forte. Um teste de Deus para experimentar se algum sanguinário cai em tentação justificando um ato dantesco destes. Usando seu nome em vão. Abandonar o humanismo de dois mil anos em prol de um barbarismo e tradição de intolerância sanguinária estremada incentivada na narrativa da Bíblia.

Narrativas jornalísticas da antiguidade

Ramsés II (1298-1235), atravessa a fronteira egípcia em Sila e um mês depois chega aos arredores da cidade de Kadesh, perto do rio Oronte, com o objetivo de expulsar os hititas do norte da Síria. Segundo o relato egípcio, o ‘Poema de Kadesh’, gravado nas paredes dos templos de Karnak, Luxor, Abido, Abu Simbel e no Ramesseum, Ramsés é abandonado pelos seus soldados e fica frente a frente sozinho na sua carruagem perante os hititas. O rei sente-se desolado por ter sido abandonado e faz uma prece a Amon, lamentando-se pelo seu destino. Amon escuta a prece de Ramsés e Ramsés transforma-se num guerreiro todo-poderoso que enfrenta completamente sozinho os hititas (1274). A realidade, porém, encontra-se distante deste relato irreal ao serviço da propaganda faraônica. Julga-se que os egípcios foram obrigados a recuar, não tendo tomando Kadesh, tendo os reforços chegado a tempo de salvá-lo apenas da morte. Na verdade, os hititas comemoraram a vitória sobre Ramsés pelo general Hattusil III (1286- 1265 a.C.) em uma estela de pedra na sua cidade central, como tendo expulso o invasor. Acreditar em obras de propaganda dando-lhe um significado maior do que isto se torna perigoso. Assim como Ramsés tinha seus escribas para criar poemas em honra de Amon pela sua intervenção, faziam os judeus para se promoverem e criar uma identidade étnica e religiosa contando feitos fantásticos de um povo pobre, até a sua diáspora completa pelos romanos em 70. Não foi justamente com eles que Moisés aprendeu a ler e a escrever?

Tanto os vencedores como os perdedores tentam pela narrativa mudar a realidade das suas ações, justificando os seus crimes, as suas derrotas, a certeza de sua causa pela benção dos deuses. Até hoje em dia isto ocorre com o Holocausto judeu, as versões do massacre da Armênia, que pode levar a cadeia e ao silêncio alguma outra narrativa que não o dogma de fé laico oficial imposto pelos estados. Ou as visões não conciliatórias entre a ditadura e os que perderam a luta armada por um socialismo totalitário. Assistir Lamarca (1994) ou Olga (2004) como outra coisa que não peças de propaganda é cair no engodo. Não se pode pegar narrativas jornalísticas da antiguidade e passar a tratá-las como algo que jamais foram. Que os jornalistas da época fossem diferentes dos atuais para atribuir uma verdade a um texto narrativo de publicidade escancarada. Quanto prejuízo para a humanidade isto tem levado!

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Médico, Porto Alegre, RS