Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

27 anos sem Kurt Cobain: o Nirvana e as tecnologias digitais

(Foto: Julie Kramer/Wikimedia Commons)

No dia 8 de abril de 1994, após uma semana desaparecido, o músico Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, era encontrado morto na estufa de sua residência, em Seattle. Era o fim daquela que é considerada uma das maiores bandas de rock da história e para muitos a maior da década 1990. Ícone da vertente grunge do rock (juntamente com bandas como Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chains), o Nirvana, em sua curta carreira, impactou não só a música, mas também a moda, a economia [1] e, por que não dizer, a minha vida.

Até o suicídio de Cobain, eu era uma criança que ouvia no máximo pop/rock. Não dava muita bola para o Nirvana. A barulheira guitarrística da banda, cheia de microfonia e distorção, me impedia de perceber o quanto eram belas as melodias das composições de Cobain e seus colegas de grupo. Mas isso mudou lá pela segunda metade dos anos 1990, com a chegada da minha adolescência e com uma mídia revirando o legado deixado pelo falecido astro. A MTV, que poucos anos antes exibira o clipe de Smell Like Teen Spirits exaustivamente [2], sendo a principal responsável pela explosão da banda, nos anos subsequentes à morte de Cobain fazia quase a mesma coisa com o álbum acústico Nirvana Unplugged in New York. Com um som “desplugado” tudo ficou mais fácil para mim. Aquele álbum foi a minha transição para sons mais pesados que me acompanhariam pelos anos seguintes, e o Nirvana viria a ser a personificação de minha concepção de banda de rock por excelência (e acho que o Nirvana é isso para mim até hoje).

Mais do que uma das maiores bandas de todos os tempos, coube ao grupo formado por Cobain (guitarra e voz), Krist Novoselic (baixo) e Dave Grohl (baterista que depois se tornaria vocalista e guitarrista do Foo Fighters) o rótulo de “última grande banda de rock”. Em um artigo para uma compilação especial do jornal O Globo, no final da década de 1990, o crítico musical Tom Leão se referiu ao Nirvana como o “réquiem do rock”. A palavra se refere a um tipo de prece dedicada aos mortos. Sim, o crítico decretou o fim do rock no final dos anos 90, e o Nirvana teria sido a última grande banda do gênero.

Ao longo dos anos, Tom Leão continuou se referindo ao Nirvana como a última grande banda de rock e ao seu lendário vocalista como o último astro: “De lá para cá, não apareceu ninguém parecido com ele. Nem chegou perto”, avalia já em 2014 [3]. Mas o crítico não é o único a pensar assim. A história da música e a crítica musical aos poucos construíram essa memória sobre o Nirvana, como “o último grande estouro do rock” [4]. Nesta semana, em que se completam 27 anos sem Kurt Cobain, o periódico El País se referiu a ele como “o homem que liderou a última revolução do rock” [5]. A lenda está aí. Cai quem quer.

Internet e as novas mídias digitais

Gosto de entender as conjunturas sociais que colaboram ou mesmo possibilitam que determinados artistas, obras e vanguardas artísticas se destaquem. Ou seja, os modos como sociedades e arte dialogam em períodos da história. Como já disse, sou fã da banda, e pouco me interessa se ela foi ou não a última das grandes. O que me interessa é saber por que falam isso. E uma possível resposta veio, sem querer, de uma outra grande banda dos anos 90, o Oasis. No documentário sobre a banda chamado Supersonic (recomendo!) [6], focado nos mega-shows que o Oasis fez em Knebworth no ano de 1996, quando estava no auge, em certo momento, Noel Gallagher (ou seria o Liam? As vozes são parecidas) diz o seguinte: “gosto de pensar naquele show como o último grande encontro de pessoas antes da internet”.

É a deixa para entendermos a conjuntura. O Nirvana foi a grande banda de rock da primeira metade dos anos 90. Seu vocalista morreu em 94. O show ao qual um dos irmãos Gallagher se refere foi em 96. A internet estava crescendo. Coincidência? Para mim, não. A internet mudou nossa maneira de ouvir música e mexeu com a capacidade da indústria fonográfica de criar mitos. Mega-astros são mais difíceis de forjar hoje em dia. Não temos tantos clipes estreando no programa Fantástico, como acontecia com os de Michael Jackson. E, quando temos, muita gente não assiste porque está vendo Netflix ou ouvindo o lançamento de um artista qualquer na internet. A MTV, que impulsionou o Nirvana por meio da exibição massiva de Smell Like Teen Spirits, perdeu força nas últimas décadas.

A questão sobre “a última grande banda de rock” não é tanto estética ou artística. Não tem a ver com a “qualidade” do rock feito de meados dos anos 1990 para cá, mas com as mudanças tecnológicas, com as formas pelas quais a música chega aos nossos ouvidos. É interessante como as plataformas midiáticas capturam e moldam nossos sonhos, gostos e opiniões. Como um fã, eu poderia atribuir o rótulo de última das grandes às qualidades, atitude e honestidade artística do Nirvana. Poderia falar da genialidade rara de Cobain. Poderia ainda dizer que tudo o que foi feito no rock do final da década de 1990 para cá foi de qualidade razoável e por isso o Nirvana segura o bastão de grande banda até hoje. Mas seria uma tentativa de explicação com base em características intrínsecas à música, à arte. Só que a arte não explica tudo por si mesma. Concepções como talento, genialidade e sucesso sempre são forjadas através de contextos e conjunturas sociais. No caso do Nirvana, as mudanças tecnológicas e a rápida ampliação da internet e das mídias digitais, com as consequentes mudanças sociais possibilitadas, parecem-me fundamentais para explicar o modo como a banda entrou para o inconsciente coletivo dos roqueiros.

Para além do Nirvana: novas tecnologias, novas lógicas de mercado

Hoje temos YouTube, Spotify, Deezer, muita informação e dispersão. Tudo isso pulverizou a força da indústria fonográfica e da mídia tradicional, que ainda influenciam as tendências, mas não tanto quanto nas últimas décadas do século passado. Mega-astros pop como Michael Jackson e Madonna foram possíveis na década de 1980, no auge da cultura de massa. Entraram para a história, mas dificilmente fenômenos equivalentes irão se repetir no contexto atual. Isso não tem tanto a ver com o talento desses artistas, mas com as mudanças nas tecnologias de comunicação.

Enxergar as coisas dessa forma nos faz perceber que quando alguém diz que “a música de antigamente é que era boa”, frequentemente está falando sobre mídia e não sobre música. Em 2019 o cantor Milton Nascimento disse em uma entrevista que “a música brasileira está uma merda” [7]. A afirmação repercutiu bastante na ocasião gerando polêmica. Em seguida, o músico fez uma publicação em rede social sendo mais específico e explicando que estava se referindo “exclusivamente à música feita no mainstream do mercado nacional, consumida pela massa” [8].

Ou seja, a crítica, no fundo, é à mídia de massa. Na medida em que as novas tecnologias, como as redes sociais, o YouTube e os serviços de streaming de áudio, foram facilitando as demarcações dos nichos do mercado fonográfico (hip hop, metal, indie rock…) a mídia de massa teve que ficar cada vez mais… massiva. Isso significa dizer que TVs e rádios miram em um “denominador comum”, em algo que grande parte das pessoas gosta (ou está acostumada a gostar), deixando para os nichos os artistas diferenciados. Portanto, se o que toca nas mídias de massa desagrada os seus ouvidos, saiba que a “música de qualidade” ainda existe, mas é preciso garimpá-la.

Movimento semelhante pode ser visto nos cinemas nos últimos anos: as bilheterias das salas de exibição foram quase que monopolizadas por filmes de heróis, animações infantis e franquias de ação com muita explosão (Velozes e Furiosos, por exemplo), enquanto os filmes, digamos, mais “sérios”, “artísticos” ou “cults” vêm migrando para o streaming. As salas de cinema miram no que vende mais, e quem não curte os blockbusters corre para os nichos.

Então essa é a teoria: talento à parte, por trás do selo de réquiem do rock que o Nirvana até hoje carrega, o que existem são mudanças significativas nas tecnologias de veiculação da música. E essas mudanças também contribuíram para o modo como o público, a crítica e os historiadores construíram a memória do rock e o papel do Nirvana nessa memória.

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Alexandre Freitas Campos é jornalista, cineasta e historiador; doutorando em História Social (Uerj), mestre em Mídia e Cotidiano (UFF), especialista em Sociologia Política (Ucam) e pesquisador em educação e popularização de ciência, tecnologia e história.

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Referências:

[1] e [3] http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/04/livro-tenta-explicar-mito-em-torno-de-kurt-cobain-20-anos-apos-sua-morte.html

[2] https://rollingstone.uol.com.br/noticia/por-que-kurt-cobain-nao-gostava-de-tocar-smells-teen-spirit-do-nirvana/

[4] https://www.camara.leg.br/radio/programas/497777-25-anos-de-smells-like-teen-spirit-do-nirvana/

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/04/cultura/1554387027_625739.html?utm_source=Facebook&ssm=FB_BR_CM&fbclid=IwAR3OeFZhEg6VL1g5B0l6YXWRKc-4mJ90Y2g27W9O75eD_gU2lGdyc_McnLI#Echobox=1617056459

[6] https://www.omelete.com.br/musica/oasis-netflix-colocar-supersonic-em-seu-catalogo

[7] https://www.itapemafm.com.br/em-entrevista-polemica-milton-nascimento-declara-que-musica-brasileira-esta-uma-merda

[8] https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2019/09/23/milton-nascimento-musica-brasileira/