Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Governo vetará multiprogramação

Desde a publicação, em fevereiro deste ano, da norma sobre a execução dos serviços de TV Pública Digital (TVPD), que prevê a proibição ao uso da multiprogramação por parte de todas as emissoras à exceção daquelas exploradas pela União, teve início uma dura disputa nos bastidores em relação à regulamentação desta funcionalidade.

Em defesa da liberação da possibilidade da transmissão de programações adicionais, se levantaram as educativas públicas, notadamente a TV Cultura e a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), e grupos comerciais como as redes Bandeirantes, Gazeta e Rede TV e o conglomerado editorial Abril. Do outro lado, a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert), hegemonizada pelos interesses das Organizações Globo, adotou postura contrária à permissão deste recurso tecnológico.

Em razão das críticas pela proibição inserida na norma sobre os serviços de TVPD, o Ministério das Comunicações (Minicom) anunciou no início de março que em 90 dias publicaria nova norma regulamentando a funcionalidade para as emissoras de televisão. Pelas sinalizações do titular da pasta, Hélio Costa, o veto será mantido. ‘Temos que ver como é que a multiprogramação se encaixa no marco regulatório atual. Pelo que diz hoje a Constituição Federal você esbarra em alguns limites difíceis de serem contornados’, disse em coletiva dada no último dia 22 em Brasília.

Exploração ilegal

Na verdade, o impedimento não está na Carta Magna, mas no Decreto 52.795, de 1963, que regulamenta os serviços de radiodifusão disciplinados pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/1962). Segundo o Artigo 14, ‘a mesma entidade ou as pessoas que integram o seu quadro societário e diretivo não poderão ser contempladas com mais de uma outorga do mesmo tipo de serviço de radiodifusão na mesma localidade’.

O entendimento sobre a ilegalidade da multiprogramação é levantado por entidades da área de comunicação desde antes da publicação do Decreto 5.820, de 2006, que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T). ‘Desde 2004 afirmamos ser a multiprogramação, do ponto de vista regulatório, uma questão complexa, e que o uso de um mesmo canal para a distribuição de diversas programações não poderia acontecer sem uma mudança legislativa’, recorda Diogo Moysés, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Para Moysés, é ‘curioso’ que só agora, mais de um ano após o início das transmissões digitais, ‘o governo reconheça que a multiprogramação não pode ser implementada com o marco regulatório vigente’. A motivação, insinua, estaria no atendimento aos interesses da Abert nesta questão. ‘Hélio Costa é conhecidamente um ministro afinado com os radiodifusores comerciais, mas é ainda mais fiel aos interesses da Globo, que nem de perto quer ver seus maiores concorrentes, em especial a Abril, transmitir duas, três ou até quatro programações na TV aberta’, argumenta.

O representante do Intervozes também se diz ‘estarrecido’ com a argumentação do Ministério de que a abertura à multiprogramação pode potencializar o uso indevido das outorgas de rádio e TV existente hoje. ‘O ministro assume sem querer que hoje existem concessionários que exploram o serviço de forma ilegal, sem serem incomodadas pelos responsáveis pela fiscalização do serviço, ou seja, ele mesmo’, critica.

Caráter experimental

A solução adotada pelo Minicom será a expedição de licenças para transmissões ‘em caráter experimental’. ‘Há um mecanismo na lei que `em caráter científico e experimental´ você pode permitir uma outra programação. No momento esta é a única saída. O resto é com o Congresso Nacional’, afirmou Hélio Costa. A autorização para a TV Cultura de São Paulo, que em março colocou duas programações adicionais no ar sem qualquer permissão, já está em fase de conclusão. ‘Liguei para José Serra na semana passada, até porque o presidente da República estava preocupado. Reportei que estamos encontrando solução legal’, disse o ministro na coletiva.

Segundo Costa, o ministério irá analisar caso a caso os pedidos para este tipo de transmissão. Mas argumentou que sua pasta não fará uma liberação indiscriminada pelo desvirtuamento que existe hoje na exploração das outorgas de educativas. Perguntado pelo Observatório do Direito à Comunicação o porquê de o governo federal não ter instituído um procedimento rigoroso de avaliação na concessão de uma licença para educativas, uma vez que esta modalidade não passa por licitação, o ministro afirmou que isto é um tema para ser discutido na Conferência Nacional de Comunicação.

Segundo matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo de quinta-feira (30/4), o ‘remendo’ feito pelo ministério não é visto como boa solução pelas redes comerciais que desejam fazer multiprogramação, uma vez que impede a veiculação de publicidade. Ao noticiário especializado Tela Viva News, André Mantovani, diretor de canais do grupo Abril, disse que a veiculação de programações adicionais não fere a lei, pois o canal continua sendo único. O argumento, porém, é frágil, pois a inclusão de mais uma programação configura um novo serviço de radiodifusão de sons e imagens.

Segundo o engenheiro Takashi Tome, do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), a multiprogramação demanda novas concessões pelo fato dela dar ao outorgado poder de transmitir conteúdos de forte influência livremente à casa das pessoas. ‘O rigor da concessão é devido ao `poder de influência´ que a comunicação de massa inquestionavelmente possui, e não por causa do uso do espectro, como se costuma pensar. Claro, o uso do espectro também necessita de autorização, mas estações repetidoras de TV e de TVA [serviço de TV por assinatura na faixa UHF] usam a mesma canalização de 6 MHz que a TV aberta, e nem por isso elas precisam de concessão’, justifica.

Nova legislação

O ministro das comunicações sinalizou claramente em suas declarações que a multiprogramação para as emissoras outorgadas só poderá ser feita a partir de uma mudança da legislação. O Minicom exclui desta restrição as emissoras da União uma vez que estas não são outorgadas, mas são o próprio poder concedente explorando os serviços de radiodifusão. Por isso, não estão sujeitas às mesmas obrigações do que os concessionários de rádio e TV. ‘No setor público, não tem concessão, tem consignação. É governo entregando para o governo mesmo a consignação’, explicou.

Na avaliação do professor da Universidade de Brasília e autor de livros sobre o tema, César Bolaño, a nova lei deve manter a prerrogativa do Estado de ser o poder concedente para qualquer serviço de radiodifusão. ‘O concessionário não pode decidir quem vai ocupar o espectro, apenas o Estado pode fazer isso. Por isso, os outorgados não devem receber 6 MHz [espaço utilizado para transmitir um canal em analógico] e utilizarem ao seu bel prazer, mas devem pedir uma licença discriminando o que pretendem transmitir e a União deve dar apenas o espectro suficiente para isto. Não faz sentido ter espectro ocioso nas mãos dos concessionários’, defende.

Para a efetivação deste modelo, diz Bolaño, seria importante retomar a idéia da transmissão por meio de operadores de rede, infra-estruturas compartilhadas que irradiam o sinal de todos os canais, podendo, assim, organizar melhor o espaço que cada um ocupa na faixa de espectro disponível naquela localidade. ‘Como o paradigma para a utilização do espectro de freqüências na TV digital é outro, a forma mais racional para otimizar o espaço disponível para novas programações seria instituir a figura do operador de rede’, endossa Diogo Moysés.

Na opinião do engenheiro Takashi Tome, a nova regulamentação dos serviços de TV aberta na plataforma digital deve aproveitar funcionalidades como a multiprogramação para ampliar o número de atores e vozes presentes na arena da mídia eletrônica. ‘Uma possibilidade seria obrigar o concessionário a carregar uma segunda programação com conteúdo 100% local ou com programação totalmente independente dele’, sugere.

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Do Observatório do Direito à Comunicação