Foi melancólico rever, meio século depois, alguns daqueles jovens esperançosos que estavam ao meu lado no movimento estudantil de 1968 e na luta armada subsequente à assinatura do AI-5, quando o Brasil foi submetido ao terrorismo de Estado sem quaisquer limites.
Refiro-me, claro, à exibição on line, no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, do filme Os arrependidos, que os diretores Armando Antenore e Ricardo Calil realizaram inspirados, principalmente, na dissertação de mestrado de Alessandra Gasparotto, que virou livro em 2011 com o título de O terror renegado.
Dei depoimentos para o trabalho de mestrado e também para o filme (como fiz quase sempre que alguém veio me pedir minha versão e avaliação dos acontecimentos dos anos de chumbo, com a única exceção de um ex-colega da ECA-USP que deu uma guinada ideológica de 180º e se tornou um dos ultradireitistas extremados da revista Veja).
Um grande mérito do documentário foi mostrar:
— como os aproximadamente 40 ditos arrependidos foram meros peões da propaganda enganosa da ditadura de Emílio Médici, daí os patéticos comerciais de TV da dita cuja terem sido incluídos à farta para revelar o modus operandi dos Goebbels brasileiros em sua lavagem cerebral; e
— como causaram imenso estrago na vida dos prisioneiros laçados para desempenharem, sob coação ou por calculismo (encurtar suas penas) tais papéis.
É dada grande ênfase ao primeiro episódio, quando cinco detentos do Presídio Tiradentes, já saídos da fase de tortura, negociaram com o Dops paulista a realização de entrevistas e distribuição de escritos contrários à luta armada.
Para qualquer pessoa perspicaz, deve saltar aos olhos a superficialidade dos argumentos com que ainda hoje tentam justificar tal decisão.
O líder, que dera continuidade a uma tradição familiar de apoio aos ideais de esquerda, era o teórico da turma. Afora a óbvia motivação pessoal (e oportunista), acreditou que pudesse abrir caminho para uma pacificação dos espíritos e ser futuramente reconhecido como o visionário que interrompera as matanças.
Um segundo reagiu de maneira machista à violenta rejeição com que os cinco foram recebidos pelos outros presos ao voltarem para o Tiradentes: tornou-se integralista convicto, leitor e divulgador de Plínio Salgado.
Os outros três eram apenas liderados. Um deles, meu companheiro desde o movimento secundarista, me contou muito tempo depois que mais se deixou arrastar do que concordou com aquilo tudo.
[Aliás, foi ele também quem teve o indesejável privilégio de estrear os equipamentos de tortura da Operação Bandeirantes como cobaia, quando tal filial do inferno ainda estava em fase de instalação…]
A repercussão foi pouca e talvez a coisa parasse por aí se Massafumi Yoshinaga não se encontrasse em situação precaríssima, após desligar-se da VPR porque, como me disse na ocasião, “não aguentava mais ficar ouvindo dia e noite papos sobre armas e estratégias militares”.
Jovem com imensa necessidade de estar junto ao povo, vibrando e confraternizando com aqueles por quem lutava, sentia-se como fera enjaulada tendo de submeter-se às limitações da clandestinidade.
Ainda por cima, a repressão plantara muito alarmismo na imprensa a respeito do japonês da metralha que participava das ações da VPR; então, quando o nome do Massa caiu no seu conhecimento, acabou supondo que fosse ele o dito cujo (o verdadeiro era o Yoshitane Fujimori).
O Massa pediu desligamento e a VPR, numa decisão tão descabida quanto insensata, nem lhe ofereceu uma opção de fuga para o exterior, nem um refúgio seguro no interior do país, nem mesmo uma boa quantia em dinheiro para atravessar os primeiros tempos. Como resultado, não só a família temia abrigá-lo, como ele teve de dormir em barracas no Mercado Municipal, participar de colheitas no interior, etc., sujeito não só ao risco de ser preso a qualquer momento, como também a inúmeras privações.
Em desespero, conseguiu que a família do líder do primeiro arrependimento o colocasse a par do seu drama e pedisse conselho. A resposta que veio do Tiradentes foi a de que, se o Massa resolvesse entregar-se à repressão, teria a incolumidade garantida e logo sairia da prisão, além de prestar um serviço aos velhos amigos, pois isto agilizaria a libertação deles.
O Massa aceitou o conselho, foi logo libertado, mas, ao invés de reencontrar o calor das massas, foi é gelado no seu circulo de relacionamentos, enlouqueceu, tentou duas vezes o suicídio e teve êxito na terceira. Este drama terrível é um dos momentos culminantes do documentário.
Os dois primeiros episódios foram entregues numa bandeja à repressão, tendo o ditador Médici apreciado intensamente a apresentação do Massa na TV. A inusitada rendição ao inimigo causou um impacto imensamente superior ao do blablablá daqueles que já estavam presos.
Protagonizei, infelizmente, o terceiro episódio, que teve características diferenciadas, pois envolveu uma disputa de poder entre os quadros da repressão.
Depois de mais de dois meses de prisão e incomunicabilidade, fui transferido do DOI-Codi/RJ para a PE da Vila Militar (RJ), para uma mera finalização de inquérito, teoricamente sem torturas.
Mas os oficiais de lá tinham, algumas semanas antes, sido afastados do vantajoso esquema de capturas dos combatentes da luta armada, como punição pela péssima repercussão internacional da morte sob torturas do estudante de medicina Chael Charles Schreier, de 23 anos, militante da VAR-Palmares. As justificativas inverossímeis da repressão eram recebidas com risadas no exterior.
Ora, dividindo entre eles tudo de algum valor que apreendiam conosco, bem como as recompensas recebidas de empresários direitistas por cada um dos nossos que capturavam ou assassinavam, haviam se acostumado a um padrão de vida muito superior ao que seus soldos lhes facultava. Então, tentavam desesperadamente ser readmitidos no filão mais lucrativo do esquema repressivo.
Assim, acreditaram que, mesmo tanto tempo depois, poderiam arrancar de mim alguma informação útil. Sob a batuta do então tenente Aílton Joaquim, atiraram-me numa solitária imunda e desfecharam uma temporada de torturas extemporânea e que deu péssimos resultados: nada obtiveram para provar que eram melhores do que os concorrentes do DOI-Codi, mas me estouraram um tímpano e levaram uma aliada da VPR, também presa na unidade, a cortar os pulsos.
Sabendo que seriam punidos por extrapolar as ordens do comandante do inquérito, e com o episódio do Massafumi repercutindo na imprensa, veio-lhes a ideia de aumentar a aposta para tentarem mesmo assim sair no lucro.
Forçaram-me a escrever uma carta aos jovens, colocando-me, para tanto, exatamente ao lado da sala na qual torturavam aquela aliada com choques elétricos que lhe arrancavam gritos lancinantes; esmurravam-me e gritavam comigo de passagem, em seu entra-e-sai da sala.
A carta virou um vídeo gravado em plena madrugada no estúdio da TV Globo no Jardim Botânico, sob ameaça de eu nem sequer voltar vivo para o quartel se desdissesse o que constava da maldita carta.
É por isso que, desde a década passada, geralmente sou colocado por historiadores e jornalistas como a vítima do primeiro arrependimento forçado.
A partir desses três episódios, os responsáveis pelas operações de Guerra Psicológica nas Forças Armadas foram orientados a valorizarem o trunfo surgido meio por acaso, assumindo o controle dessas operações e negociando com os presos considerados apropriados para o papel; quando malsucedidos, não hesitariam em recorrer a coações.
O documentário relembra, também, o igualmente trágico episódio do Manoel Henrique Ferreira, que, apavorado com as torturas, concordou em fazer o que lhe pediam em troca da garantia de não ser mais barbarizado.
Na noite em que o vídeo com ele gravado ia ser levado ao ar, instalaram um televisor na sua cela, para que todos assistissem. O Mané se convenceu de que era uma tentativa de fazer com que ele fosse justiçado pelos próprios companheiros e escreveu a célebre carta-dossiê a D. Paulo Evaristo Arns, que correria o mundo.
P.S.: ia esquecendo, a volta à baila desse assunto, que evidentemente me deprime, coincidiu com o transcurso dos 51 anos da minha prisão pelo DOI-Codi/RJ, em 16/04/1970, às 6h45, na praça Saens Peña (RJ).
Nos primeiros tempos, lamentei que a VPR tivesse nos entregado cápsulas de cianureto inócuas e mandado nos livrarmos delas quando o primeiro preso a usar uma só teve diarreia (!); de qualquer forma, eu dava como favas contadas a minha execução adiante.
Foi uma das poucas previsões que já errei redondamente. E acabei descobrindo que havia vida depois do inferno. (CL)
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Celso Lungaretti é jornalista, escritor e anistiado político.