O desfecho da Guerra Fria suscitara, no fim do milênio, a esperança de um mundo reconciliado e, a partir de então, sem história. Essa utopia, ilustrada na obra de sucesso planetário do cientista político norte-americano Francis Fukuyama, foi, é verdade, desbancada pelo livro concorrente no posto dos mais vendidos, de Samuel Huntington, no qual descrevia um universo abalado pelo “choque das civilizações”.
Ambas as ficções futuristas foram ultrapassadas pelos acontecimentos. A vida cultural, diplomática, econômica, ambiental, política, social e tecnológica deu ensejo a cenários que inviabilizaram qualquer tentativa de previsão. Estamos desde então diante de uma verdadeira Caixa de Pandora, que não deveu nada ao traço empolgante dos ensaios incitadores de discussão e de debate.
Trinta anos mais tarde, o mundo não vive, com efeito, um momento de equilíbrio e de harmonia, mas sim um episódio de tensões entre as duas principais potências econômicas, tecnológicas e militares, a China e os Estados Unidos. Essa tensão ocorre sobre um fundo de conflitos locais numerosos, mortíferos e mal controlados, desde os confins russo-ucranianos até a Coreia do Norte, passando pela Síria e pelo Afeganistão, sem esquecer da Líbia, do Cáucaso, etc.
Esses conflitos, ao contrário das antigas crises entre Leste e Oeste, originam-se fora de qualquer domínio racional. O outro, adversário e concorrente (inimigo?), é, com efeito, cada vez menos reconhecido como tal. Infeliz retorno ao cinturão dos soldados alemães da Primeira Guerra Mundial, que exibia um “Gott mit uns” (Deus está conosco) sem concessões, interditando assim qualquer alternativa negociada. Após a queda da União Soviética, o vencedor da Guerra Fria impôs uma visão unidimensional do mundo. “Azar do vencido”, já dizia o chefe gaulês Brennus aos romanos que foram submetidos a sua autoridade. O direito de intervir nas decisões dos povos que não seguem a via do liberalismo econômico e democrático tornou-se regra universal. “Ego […] comprometeu-se com Alter não reconhecido na sua igual diferença”, escreveu sobre aqueles anos o sociólogo Dario Battistella.
Os ponteiros universais foram então “naturalmente” alinhados, a partir de 1991, segundo o meridiano do vencedor. A sua Verdade prevaleceu, com a exclusão de todas as outras. Ela desvalorizou a diplomacia e os compromissos herdados da Guerra Fria. O equilíbrio militar entre potências que se opunham ideológica, política e socialmente, paradoxalmente permitiu a construção de um diálogo entre o “Leste” e o “Oeste”. “Aos poucos”, escreveu Maurice Vaïsse, “os dois blocos chegaram a conceber que suas relações não tendiam necessariamente para a guerra aberta”, mas para a “coexistência pacífica”.
O apagamento desta racionalidade diplomática, baseada em uma cuidadosa preservação da paz, abriu o caminho para uma regressão intelectual e moral. Os valores generosos e liberais reivindicados legitimaram o retorno a uma cultura intolerante de inspiração religiosa. “A mentira”, disse Rony Brauman, “torna-se uma etapa rumo à verdade e à guerra”. Os valores, “humanitários”, generosos e liberais, revelaram-se portadores de ingerências, de sanções unilaterais e de intervencionismos militarizados. O Iraque foi invadido e destruído. Os dirigentes e as populações de Cuba e do Irã, e depois da Venezuela, foram submetidos a severas medidas de bloqueio e embargo. Pudemos constatar os limites e as consequências destas atitudes agressivas, validando, em última instância, as “guerras justas” na Líbia desde 2011.
A resistência da Coreia do Norte, de Cuba, do Irã, o ressurgimento da Rússia e a crescente afirmação da China embaralharam as coisas. A norma liberal-democrática ocidental e o direito à interferência que a ela está implicitamente ligado foram bem recordados por Joe Biden, o novo presidente dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 2021. Essa norma, no entanto, é agora rejeitada por um certo número de países, que dispõem de meios militares, econômicos e tecnológicos importantes. A norma imposta em 1991 pelo vencedor do confronto Leste/Oeste, os Estados Unidos, é agora contestada, ou até mesmo transgredida, tal como escreveu o estudioso Oliver Stuenkel. “As potências emergentes”, ele escreveu, “intuitivamente, como a China, vão destruir essa norma”. Para o bem ou para o mal, a China e a Rússia coordenam cada vez mais a recusa dessa norma e esforçam-se para se associar ao círculo dos Estados resistentes da África, das Américas e da Ásia.
Mas ‘quando’, e, sobretudo, ‘como’ se fará essa transgressão? Verifica-se hoje, em ambos os lados, uma partilha altamente perigosa de valores irreconciliáveis acompanhada de uma combatividade crescente. Um contexto que lembra o início da Guerra Fria está se formando em todo o mundo. Na América Latina, a crise venezuelana é duradouramente deixada sem solução. China e Rússia, Irã e Cuba multiplicaram os gestos diplomáticos e as iniciativas com vistas a perpetuar a autoridade no poder. Os Estados Unidos e a Europa, por outro lado, esforçaram-se para organizar uma espécie de Santa Aliança destinada a forçar uma mudança no topo da administração do Estado venezuelano. Duas legitimidades se opõem: a do poder local, que controla o território e a população, e que foi plenamente reconhecida pela China, Rússia e seus amigos, e aquela de um presidente in partibus, reconhecido internacionalmente em sua autoridade pelos “ocidentais” e por seus aliados latino-americanos. Um sinal de mudança dos tempos: dos 194 países que ocupam uma cadeira na ONU, apenas um pequeno terço deles apoia esse representante eleito pelo “Ocidente”.
O impasse é hoje sem saída, tanto por falta de uma convivência pacífica, como por falta do abandono desse espírito de Guerra Santa. O momento é ainda aquele insólito de uma diplomacia de difamação mútua. Os governos e partidos políticos de direita na América Latina escolheram, em relação à Venezuela de Nicolas Maduro, a ofensiva. Eles deixam de lado o diálogo com os dirigentes venezuelanos, insultando-os com nomes como: “castro-chavistas”, “populistas”, “criminosos”, os quais, por sua vez, respondem, com igual paixão, aos “imperialistas”, “reacionários” e outros “traidores” que apoiam o autoproclamado Juan Guaidó.
O pior ainda é possível: uma cristalização de antagonismos ideológicos, geopolíticos e militares entre, por um lado, os Estados Unidos e os seus seguidores, por outro, a China, a Rússia e os seus amigos. Ainda assim podemos imaginar outros cenários, mais razoáveis, baseados na perspectiva de uma coexistência multilateral reciclada. Afinal, quem poderia ter imaginado, em 2016, que um chefe de Estado colombiano, pró-ocidental, Juan Manuel Santos, e uma guerrilha marxista-leninista, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas) não só iriam dialogar, mas também conseguir assinar um acordo de paz? Acordo saudado no seu tempo pelo conjunto dos blocos antagônicos em gestação, e que foram acima citados.
Texto publicado originalmente em francês, em abril de 2021, na seção ‘Newsroom’ do site DecipherGrey, Londres/Reino Unido, com o título original “Le Nouvel Ordre International: Au Jeu Dangereux des Intolérances Mutuelles”. Tradução: Manoel Sebastião Alves Filho e Simone Garavello Varella. Revisão: Luzmara Curcino e Pedro Varoni.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean-Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.