Muito se fala sobre a representatividade no Congresso Nacional e o desejo, quase utópico, de que este espaço seja acessível às minorias sociais ou que, em última instância, reflita os valores dos(as) cidadãos e cidadãs brasileiros(as) em seus quadros. Entretanto, a realidade da Câmara dos Deputados e do Senado Federal é um reflexo distorcido desta premissa, pois ambas as casas se assemelham muito mais às lideranças partidárias e a elite empresarial do que à composição da sociedade e da classe trabalhadora. Enquanto a bancada empresarial é composta por 192 deputados e 38 senadores, a sindical é seis vezes menor: 33 deputados e 5 senadores. Números contrastantes aos apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que apontam, aproximadamente, 100 milhões de trabalhadores (86 milhões ocupados e 14 milhões desocupados) no Brasil; e pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), que calcula 19 milhões de empresários (CNPJs registrados). Ou seja, existem cinco vezes mais pessoas físicas do que jurídicas no mercado. Eloquente distorção.
Talvez seja por isso que, em 2015, a Câmara e o Senado aprovaram o fim da doação por pessoas jurídicas de direito privado, além de terem estabelecido limites de gastos às campanhas eleitorais, com valores distintos para cada cargo em disputa com o objetivo de reduzir os custos das campanhas e evitar o financiamento de determinadas candidaturas por grandes empresas em busca de benefícios políticos a longo prazo. Em 2017, o Congresso também pôs fim a Propaganda Partidária Gratuita, bem como a renúncia fiscal garantida às emissoras de rádio e televisão para a sua veiculação, reduzindo, assim, os gastos do Estado. Mas, talvez, os passos mais importantes dados pela Câmara e o Senado foram a criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC), o famoso Fundo Eleitoral, que passou a destinar recursos do Tesouro Nacional para o financiamento de campanhas já no pleito de 2018, equiparando, mesmo que minimamente, o poder econômico das candidaturas na disputa.
Assimetrias e Representatividade
A desigualdade no Congresso Nacional não acaba na representatividade econômica. Outros exemplos de distorções, ainda mais graves, são vivenciados por negros e mulheres. Nas eleições de 2018, por exemplo, havia 54 vagas em disputa no Senado, mas apenas sete candidatas as preencheram. Elas se somaram às três eleitas em 2014, totalizando 11 representantes femininas em um universo de 81 vagas. Algo semelhante ao encontrado na Câmara dos Deputados, onde 77 das 513 cadeiras são ocupadas por mulheres. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), este número piora ao observarmos que apenas 658 dos 5.568 municípios do país elegeram prefeitas. Cinthia Ribeiro (PSDB), de Palmas/TO, é a única mulher a governar uma capital estadual e outras nove estão à frente de uma das 96 cidades do Brasil com mais de 200 mil eleitores. Quando olhamos para as Câmaras Municipais, vemos que 1.286 cidades não possuem representatividade feminina alguma e que, das 704 cadeiras de vereador(a) disponíveis nas capitais, apenas 107 foram ocupadas por mulheres.
Quando observamos a representatividade das etnias no Congresso e em Palácios de Governo e Prefeituras, percebemos o mesmo padrão excludente: somente três senadores e 21 deputados(as) federais eleitos(as) em 2018 se declararam negros(as), assim como 11 senadores(as) e 104 deputados(as) se declaram pardos(as). Números bem inferiores aos 40 senadores(as) e 385 deputados(as) brancos(as). Dos 27 governadores e governadora eleitos em 2018, 20 se declararam brancos, sete pardos e nenhum negro. Já entre os 25 prefeitos e prefeita eleitos nas capitais em 2020, 17 são brancos, oito pardos e um negro, Rogério Cruz (Republicanos), que não passou pelo crivo dos(as) eleitores(as) de Goiânia/GO, pois era candidato a vice na chapa do prefeito eleito, Maguito Vilela (MDB), que faleceu vítima do novo coronavírus 13 dias após tomar posse.
Estes dados apontam para uma profunda distorção da participação congressual, que não representa a estrutura social brasileira. Segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019, pardos(as) e negros(as) correspondem a 56,2% da população, enquanto as mulheres são 51,8%. De acordo com o TSE, o sexo feminino também é a maioria do eleitorado nacional com 52,5%.
Superioridade não observada no Congresso, que é dominado por homens brancos, casados, com mais de 55 anos e ensino superior completo: o retrato fidedigno das lideranças partidárias e da elite econômica. Para reverter este cenário, o Congresso aplicou, nas eleições de 2018, uma lei aprovada no longínquo ano de 1997, que reserva 30% das candidaturas dos partidos para um gênero especifico, bem como a distribuição proporcional do Fundo Eleitoral e de tempo no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), que garantem uma visibilidade mínima às mesmas. O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, determinou incentivos idênticos fossem destinados às candidaturas negras em 2020, pois já haviam sido aprovados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas seriam aplicados somente em 2022.
Devido a proximidade do pleito, ainda não foi possível avaliar o resultado oriundo desta decisão do STF, mas pode-se afirmar que houve um registro recorde de candidatas nas disputas municipais de 2020: 187.023 contra 158.450 de 2016. Estes números mostram que houve uma ligeira melhora na representatividade feminina durante o processo eleitoral, contudo ainda está longe do ideal. Mas, onde entra o HGPE nessa história e como ele pode contribuir para um sistema eleitoral mais justo e representativo?
Campanhas e Visibilidade Eleitoral
Antes dessa pergunta ser respondida, deve-se ter em mente que as campanhas eleitorais são o principal processo do sistema democrático representativo, pois indicam o momento em que os(as) eleitores(as) escolhem seus/suas representantes nos espaços de poder, cujo acesso se dá mediante autorização popular. Elas também são palcos de disputa por visibilidade positiva, que se estruturam de acordo com os fatores políticos, sociais, jurídicos e econômicos do momento, que por sua vez, influenciam os aspectos comunicacionais do pleito. Ou seja, as leis aplicadas recentemente garantem algum fundo e visibilidade, através do tempo de HGPE, aos(às) candidatos(as) que representam parcelas importantes da sociedade, mas os(as) mesmos(as) estão inseridos em um sistema mais complexo, cujos fatores externos são tão ou mais importantes que os garantidos pela legislação eleitoral numa eleição.
Também é importante ressaltar que as campanhas projetam o que já foi semeado anteriormente, fazendo parte de um continuum de relacionamento comunicacional entre partidos/candidatos(as) e sociedade. Por isso, o período pré-eleitoral é o momento em que candidatos(as) e lideranças partidárias participam de tratativas para garantir acesso aos Fundos Partidário e Eleitoral, bem como ao HGPE.
Como são recursos finitos, eles são distribuídos de acordo com o interesse estratégico dos partidos políticos, que direcionam a maioria dos recursos às campanhas consideradas prioritárias. Esta definição é tomada, quase sempre, pelas lideranças partidárias, popularmente conhecidas como caciques políticos, que distribuem boa parte dos recursos para poucos apadrinhados, definindo assim, quais terão maiores chances de sucesso no pleito, e fomentando uma profecia autorrealizável, que acaba interferindo na composição das bancadas partidárias. É como se os partidos estabelecessem, por meio da distribuição destes recursos, uma “lista fechada” que determinará sua configuração no Congresso, garantindo a ascendência de lideranças e a construção de uma efetiva base de apoio parlamentar, que garante aos caciques visibilidade política e midiática, num processo de retroalimentação que perpetua poderes na estrutura partidária e nas definições de políticas públicas ensejadas no âmbito do Legislativo. É por isso que o acesso a fundos e tempo de HGPE, determinados por lei, ainda não é o suficiente para eleger candidaturas vinculadas a minorias sociais, pois a distribuição dos mesmos perpetua a vontade das lideranças partidárias, quase sempre masculinas e brancas, e não da sociedade.
O Poder do Dinheiro Fala
As candidaturas femininas e negras que eventualmente superem este filtro, recebem recursos insuficientes para realizarem campanhas eleitorais dignas de suas jornadas e lutas, invisibilizando a intenção de representarem suas comunidades, grupos ou classes sociais, bem como de persuadirem os(as) eleitores(as) da viabilidade de seus projetos nas ferramentas de comunicação indicadas pela legislação. A paridade entre a comunicação eleitoral e o dinheiro investido nas campanhas, inclusive, é entendido como componente central para o aumento das chances eleitorais, uma vez que amplia as condições de visibilidade dos(as) candidatos(as), que são obrigados(as) a gastarem a maioria de seus recursos nas mais variadas mídias e ações de marketing político.
O êxito de uma campanha eleitoral está diretamente atrelado à quantidade de dinheiro e de visibilidade midiática obtida durante a mesma. Enquanto algumas candidaturas recebem mais dinheiro, outras recebem menos do que o necessário para executar as ações pretendidas, fazendo com que as estratégias de captação financeira passem pelo uso de recursos próprios, doações de pessoas físicas ou a venda de produtos, dentro dos limites estabelecidos em lei.
Embora apresente propostas inclusivas de tempos em tempos, a legislação eleitoral não consegue romper com o domínio do capital sobre o social, que carece de dinheiro, que por sua vez anda de mãos dadas com a visibilidade, num importante casamento entre notoriedade e representatividade, que ainda está longe de ser plenamente frequentado por mulheres, negros(as) e trabalhadores, perpetuando uma representação eminentemente masculina, branca e opulenta.
Estudo integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral (UFPR). Revisão mestrando Mateus Redivo. www.comunicacaoeleitoral.ufpr.br
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Ary Azevedo Jr. é professor doutor do Departamento de Comunicação da UFPR, coordenador do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral e GT Propaganda e Comunicação Eleitoral/Compolítica.
Gerson Scheidweiler é doutor pesquisador do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral.
Luciana Panke é professora doutora do Departamento de Comunicação da UFPR, coordenador do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral e GT Propaganda e Comunicação Eleitoral/Compolítica