A última grande crise da TV Brasil, levando à saída de sua direção do que ainda restava do time do Audiovisual e do MinC, deveria provocar profundas meditações sobre todo o projeto. Reduzir a discussão a uma possível incapacidade de gestão da jornalista Tereza Cruvinel é privilegiar a forma ao conteúdo (e injusto com a pessoa). Apontar, como fez o cineasta Orlando Senna, numa mensagem que ‘caiu’ na internet, a própria forma de organização empresarial da TV Brasil como origem dos seus males, chega mais perto das raízes, mas ainda foge da sua essência. Afinal, qualquer entidade ligada ao Estado brasileiro terá que se organizar conforme suas leis e regras. Pode-se até questionar se essas leis e regras são boas. Se não são (e o acima assinado, por experiência própria, acha que, de fato, elas são muito ruins, bur(r)ocráticas na forma e neoliberais no fundo), então que se as modifique em bloco, e não para atender a um particular projeto político, ou a uma isolada entidade.
O que devemos discutir é o próprio projeto político. Como nasce, de súbito, essa TV Brasil? Por que nasce no MinC? A mensagem entre Orlando Senna e seus pares nos dirime as dúvidas. Tratava-se de criar um canal de televisão para uma certa produção audiovisual brasileira, ou para uma certa política cultural que desejava um canal de televisão para se expressar. Logo, também, para os grupos de poder que, na sociedade ou no Estado, vocalizam aquela produção e aquela política.
Fique absolutamente claro que não se está a negar a necessidade de contarmos com um grande projeto audiovisual brasileiro. Aqui, tão somente, trata-se de apontar a tentativa de apropriação, por alguns, de um discurso que, originariamente, tinha um outro propósito, bem distinto. Daí a confusão. Daí a frustração.
Caminho longo
Sou grato ao professor Venicio Lima que há dias, numa troca particular de e-mails, lembrou-me as origens da proposta, abrigada na nossa Constituição, de criação de um sistema público de radiodifusão, complementar ao estatal e ao privado. Conforme ele mesmo escreveu em artigo publicado, no início do ano, no Observatório da Imprensa, essa proposta nasceu, visando a Constituinte, no já extinto Centro de Estudos de Comunicação (CEC), definindo o sistema público como ‘aquele que sendo financiado tanto por contribuições diretas do público, como pelo Estado e/ou pela iniciativa privada tem, todavia, sua programação sob o controle de segmentos organizados da sociedade civil’.
Proposta parecida encontramos agora no projeto de Lei Audiovisual argentino, que prevê a criação de uma reserva do espectro para ‘pessoas jurídicas sem fins lucrativos’. Claro que essas ‘pessoas’ são financiadas pelo Estado ou por agentes privados, mas o que as distingue das entidades empresariais é não terem finalidades lucrativas; e o que as distingue do Estado é nascerem de iniciativas da sociedade civil: sindicatos, ONGs, igrejas, associações das mais diversas etc.
O projeto de Cristina Kirchner, sob este aspecto, é preciso: não confunde iniciativas privadas não-comerciais com ‘entidade pública’, pois entidade pública é necessariamente o Estado (embora, reconheçamos, no Brasil de hoje está sendo muito difícil pensarmos assim…).
O espírito da proposta original do CEC, feita há 25 anos, seria similar ao do atual projeto argentino. Se esta assertiva está correta, a iniciativa do governo Lula, conduzida pelo MinC e levando atrás de si centenas de almas bem intencionadas (para alegria do Diabo…), só poderia resultar no que resultou: numa disputa de poder dentro do aparelho estatal, ou melhor, neste caso, do Executivo, com a vitória final do grupo que pode não entender de gestão, mas entende muito bem de comunicação social (e mais ainda de ‘lulismo’…). Afinal, um canal aberto de televisão é, antes de mais nada, um meio de comunicação social de massa e generalista, não uma sala de cinema na sala de visita das pessoas.
Se olharmos para os tão decantados modelos de TV pública à volta do mundo (todos eles, hoje em dia, cada vez menos ‘públicos’ e mais comerciais), poderemos observar algumas características comuns. Em primeiro lugar, são financiados por impostos diretamente cobrados aos cidadãos (no Japão, até hoje, a NHK mantém um exército de cobrança que vai de casa em casa, recolhendo as devidas taxas). Isto cria um compromisso direto com a cidadania ou, ao menos, com o contribuinte. Em segundo lugar, não menos importante, eles vingaram e sobrevivem em Estados parlamentaristas. A divisão explícita, transparente, de poder dentro do Parlamento provavelmente dá a outras instituições do Estado maior grau de autonomia relativamente ao governo (Maioria) de plantão. Num Estado presidencialista, o presidente concentra muito mais poder que os outros poderes, e boa parte das instituições do Estado, sobretudo a radiodifusão, não poderão deixar de ser, de um modo ou de outro, instrumentos do Executivo.
Em terceiro lugar, o grau de desenvolvimento político e cultural dessas sociedades separa razoavelmente bem o público do privado. No Brasil dos Gilmar Mendes, dos Sarney, dos Renan Calheiros, dos ‘diretores’ do Senado, da farra das passagens aéreas, dos palácios do Edmar, do deputado-namorado da Galisteu, dos… das… não faltam exemplos, neste Brasil, a mostrar que ainda teremos que caminhar muito para um dia ficar claro a quem quer que seja servidor público, a diferença entre vida privada e vida pública. E dinheiro privado, e dinheiro público.
Democratizar o Estado
Para esta caminhada muito ajudará um forte setor privado não-comercial: uma mídia produzida e distribuída por grupos e movimentos sociais, conforme suas organizações cidadãs, voltada para a defesa dos múltiplos interesses da cidadania, vocalizando-os na esfera pública. Aqui, podemos começar a nos entender conceitual e politicamente. Precisamos construir uma esfera pública no Brasil, aquele espaço onde cidadãos privados expõem suas razões em público, razões que só podem ser – se expostas em público e para o público – identificadas com o interesse público, com o interesse da comunidade, com o interesse da sociedade, não com meras motivações instrumentais do indivíduo.
Para isto, há que se reservar um espaço, no espectro, para sistemas que sirvam a esse campo de manifestação, lembrando, porém, que, hoje, muito à frente do mundo de 1988, esse espaço deve servir não apenas para a radiodifusão mas também (e, talvez, principalmente) para as redes interativas de banda-larga (tecnologia ‘wi-fi’, por exemplo). E não se trata só do espectro, mas de toda a forma de expressão midiática, inclusive impressa, que ainda sirva para as manifestações da cidadania e da sociedade organizada.
Para isso, tanto quanto assegurar espaço eletromagnético ou, conforme o caso, lambda, para a esfera pública, há que se discutir também o financiamento. Se o Estado (supostamente público) usa recursos (sabidamente) públicos para sustentar a mídia através de suas campanhas publicitárias, não pode, porém, alocar esses recursos conforme critérios meramente comerciais, considerando apenas, ao gosto das agências de publicidade, os números de circulação ou audiência. Recursos públicos devem ser usados também para financiar a mídia não-comercial, a mídia que fortalece a esfera pública. Aliás, um Executivo comprometido com o fortalecimento da democracia, deveria assumir essa idéia como uma de suas mais importantes propostas, talvez até mais do que a da TV ‘pública’.
Esta é uma tese que deverá ser discutida na Conferência Nacional de Comunicação. Trata-se de um dos principais itens do programa do Fórum Mídia Livre (FML) que reúne exatamente a mídia da esfera pública, a mídia privada não-comercial comprometida com a cidadania e a democracia participativa. Será pelo caminho do fortalecimento da esfera pública cidadã que, talvez, consigamos democratizar e publicizar realmente o Estado brasileiro. E, um dia, este Estado terá uma TV pública, não porque mudou-se um nome e usurpou-se um discurso, mas porque o Estado será, ele mesmo, de fato público.
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Professor do curso de comunicação da PUC do Rio de Janeiro