‘Para bem se observar um aquário, é melhor não ser peixe.’ O dito não chega a ser um grande aforismo, mas dá conta em poucas palavras da ponderável cautela que se deve ter na análise de situações que envolvem o observador por todos os lados, como os peixes num aquário, impedidos de ver a totalidade do quadro.
Vale esta reflexão para algumas das críticas dirigidas a Jon Lee Anderson, o repórter da revista New Yorker que desenhou um cenário quase catastrófico para o Rio de Janeiro às vésperas da decisão sobre a sede das Olimpíadas de 2016. O advérbio, que semantiza uma ‘ligeira diferença para menos’, deve ser honestamente invocado na análise da questão. É certo que o repórter carregou nas tintas ‘para gringo ver’, ao estender à paisagem carioca como um todo o arrocho infligido pelos traficantes de drogas às populações faveladas, mas o clima e a atmosfera emocional do ilegalismo desabrido já atinge toda a cidade. Por isso, a reportagem retrata uma realidade que é quase assim.
Em sua coluna do Globo (26/10/2009), o jornalista Ricardo Noblat aventa a hipótese de que o carioca tende a tapar a vista frente à realidade desoladora. A propósito de toda uma semana de acontecimentos violentos, um amigo seu, carioca, lhe diz ao telefone que, exceto pelo abate do helicóptero da polícia, não havia visto nada demais… Pode-se objetar a Noblat o uso dessa generalização (o carioca) e contra-argumentar com a evidência de que toda a imprensa do Rio de Janeiro foi bastante enfática na publicação dos fatos – algo que dificilmente se vê na imprensa paulista, embora se saiba que a violência pode ser ali tão preocupante quanto aqui.
‘Todo mundo parece saber o que fazer’
Tão preocupante, sem dúvida, embora com tintas menos dramáticas: em São Paulo, pelo menos, não há guerras de gangues, com o conseqüente risco das balas perdidas porque ali o PCC é uma espécie de ‘partido único’ do tráfico, ao qual obedecem os quadrilheiros de um modo geral. Ou seja, a ausência dos combates entre bandidos não se deve a um Bem reinante na megalópole, e sim, à excessiva organização do Mal.
Mas agora as tintas ficam ainda mais carregadas com a publicação de uma reportagem no prestigioso diário espanhol El País, que repete as informações ‘quase assim’ de Jon Lee Anderson e com tal ênfase que a Cidade Maravilhosa é rebatizada como ‘cidade de Deus e do Diabo’. Embora o ano de 2016 possa estar a uma distância temporal bem confortável para o aqui e agora, esse novo ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ é péssimo marketing internacional para o sonhado evento das Olimpíadas.
Efeitos retóricos à parte, é preciso deixar claro, em português, inglês e espanhol, que nem todas as regiões do Rio estão conflagradas. Mas a hipótese de Noblat está subsumida na coluna de Zuenir Ventura (28/10), no mesmo jornal, quando ele observa que, com exceção de algumas cartas de leitores ao Globo, não há um verdadeiro clamor popular contra o patamar alarmante já atingido pela violência dos ilegalismos. E indaga: ‘Todo mundo parece saber o que fazer. Por que governo federal, estadual, municipal, PM, PC, PR, Exército, Marinha, Aeronáutica, Justiça não se juntam para fazer?’
O índice de um estado de violência
O sincero escândalo do colunista tem a sua retórica, mas não é ‘para gringo ver’. Quem conhece de fato o que se passa nas esferas do submundo carioca tem motivos para uma real preocupação cívica. Por trás das linhas escritas nos jornais, na auscultação comunitária do que pensam e dizem os habitantes de zonas conflagradas ou ainda não, há uma realidade assustadora feita de muitos, muitos fuzis de última geração e munição nova, além de um descontrole do consumo de drogas na direção do crack.
Só os insensatos – ou aqueles profundamente afetados pela cultura da indiferença que conforma a consciência eufórica das camadas sociais que podem pagar por grades nos condomínios e segurança privada – se permitem enterrar a cabeça na areia da praia, como avestruzes.
Nesse ponto, os jornais parecem estar à frente da população, já que têm escancarado o que podem ou o que dizem saber da situação. Falta-lhes, porém, libertar-se da factualidade dos tiroteios ou dos acontecimentos que saltam à vista para encetar uma tarefa mais árdua: a de esclarecimento das causas profundas dessa precipitação em abismo que vem caracterizando o Rio de Janeiro e sinalizando algo parecido para várias outras cidades do país.
Árdua, sim, porque isso implica destrinçar os nós da corrupção que junta no mesmo cesto polícia, judiciário, políticos e empresários do sinistro. Em si mesmo, o ato de violência noticiado é apenas o índice de um estado de violência que, por visceral ou intestino, não teme sequer que o avestruz tire a cabeça da areia.
Jon Lee Anderson, com exageros e tudo, pode ter enxergado mais longe do que os peixes no aquário.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro