Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando Macron mancha a imagem da França

Foto: Lionel Bonaventure/AFP via Getty Images

Sem uma discreta ajuda da França em 1969, me criando a possibilidade de sair do Brasil, durante a ditadura militar, sabe-se lá que rumos teria tomado minha vida. Sou obrigado aqui a utilizar a primeira pessoa, para comentar uma decisão vergonhosa do atual presidente francês, Emmanuel Macron, atravessada em minha garganta, que não consigo aceitar.

E creio, caso fosse preciso, que poderia pedir o testemunho de tantos outros brasileiros acolhidos generosamente pela França, durante o governo militar brasileiro. Uns mais, outros menos, porém todos envolvidos na resistência à ditadura. E isso incluía concessões de asilo e bolsas de estudo, bem como autorizações de permanência ou residência na França. Essa política de acolha sempre foi aplicada tanto por governos de direita, como de centro e de esquerda.

Entretanto, aqui é preciso incluir um parêntese importante: no caso do Brasil (e deve ter sido o mesmo com outros países), a generosidade francesa não significava apoio. A França oficial, logo depois do Golpe de 64, época do presidente Pompidou, aceitou o governo militar brasileiro, tanto que o próprio De Gaulle foi ao Brasil. Havia colaboração da polícia francesa com a brasileira, troca de informações e consta que a experiência militar francesa de repressão na Argélia foi transmitida aos brasileiros.

Brasileiros suspeitos ficavam sob vigilância e, no caso de retornarem ao Brasil, eram colhidos pelo DOI-Codi, como aconteceu com o jornalista Luiz Eduardo Merlino, ex-Jornal da Tarde e Folha da Tarde, preso na casa de sua mãe, em Santos, levado para a rua Tutóia, onde foi selvagemente torturado e assassinado. O chefe dos torturadores Brilhante Ustra (elogiado por Bolsonaro, na votação do impeachment de Dilma) foi reconhecido culpado e condenado a pagar uma indenização aos pais de Merlino.

Porém, isso não impedia ser Paris, com suas universidades e seus escritores e sociólogos de esquerda, a preferência dos estudantes e intelectuais brasileiros depois da decretação do AI-5. Paris era e continuou sendo, durante décadas, o centro da resistência ao colonialismo e a todos os tipos de fascismo e de denúncia às transformações do capitalismo.

Em 1981, foi eleito presidente o socialista François Mitterrand. Era uma época em que eclodiram, na Europa, diversos movimentos armados de extrema-esquerda ou anarquistas contra o capitalismo e contra o chamado sistema social opressivo. Mitterrand poderia ter decidido negar conceder o asilo aos militantes violentos em fuga, porém decidiu inovar. Mitterrand propôs aos postulantes uma troca: a França daria a proteção do asilo aos militantes definidos como terroristas, se assumissem o compromisso de deixarem a luta armada e se reconvertessem em cidadãos pacíficos, integrados na sociedade francesa.

Era a chamada “doutrina Mitterrand”, responsável pela pacificação de cerca de trezentos terroristas da Brigada Vermelha italiana e de outros movimentos de extrema-esquerda, algumas dezenas deles acusados de envolvimento em atentados e crimes de sangue.

Neste resumo, feito para simplificar o entendimento da “doutrina Mitterrand”, está faltando mencionar que, na Itália, desde os anos 70, havia atentados e ações violentas cometidos pela extrema-direita, numa proporção bem maior, calculada pela imprensa francesa, de 70% sobre o total. Porém, havia uma diferença de tratamento: os governos italianos de direita sempre preferiam perseguir sem trégua os participantes de movimentos de extrema-esquerda, mesmo depois de terem se refugiado na França, onde haviam se integrado pacificamente, trabalhando, constituindo família com filhos e netos franceses.

Na época de Mitterrand, os mandatos presidenciais eram de 7 anos, como ele foi reeleito governou de 1981 a 1995. Nesse período, a Itália tentou obter a expulsão pela França dos acusados de crimes de sangue. Mitterrrand aceitava, em princípio, essa exceção, desde que houvesse prova. Porém, o método dos processos italianos, praticado sem o respeito das normas jurídicas, condenado pela Anistia Internacional, entidades internacionais e pela própria França, não era considerado válido pelo presidente francês.

Assim, a “doutrina Mitterrand” vigorou sem problema até 2002, quando a Itália, com base numa denúncia de um arrependido pediu a extradição de Paolo Persichetti, concedida por Jacques Chirac. Em 2004, a Itália pediu a extradição de Cesare Battisti, que conseguiu fugir para o Brasil, onde ficou até fins de 2018, quando o presidente Michel Temer assinou sua extradição para a Itália. Entretanto, Battisti conseguiu fugir para a Bolívia, esperando contar com o apoio de Evo Morales. Não houve apoio e Battisti foi levado para Roma, num avião militar italiano, em janeiro de 2019, sendo então recebido pelo ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, também chefe do partido Lega, de extrema-direita, que anunciou, na ocasião, ter uma lista de italianos refugiados na França, cuja extradição pediria para Emmanuel Macron.

Os pedidos de extradição prometidos por Matteo Salvini foram cumpridos por sua sucessora, a atual ministra do Interior, Luciana Lamorgese. Tão logo recebeu esses pedidos, o presidente Emmanuel Macron autorizou a prisão, dia 28, de dez italianos, de 63 a 77 anos, refugiados há 40 anos na França, já avós, quase todos aposentados, alguns com problemas de saúde, para que a Justiça francesa decida, nos próximos dias, sua extradição para a Itália onde terão prisão perpétua.

Três dos idosos, antigos militantes da extrema-esquerda, integrados na vida francesa, escaparam da prisão por estarem ausentes no momento da chegada dos policiais, e estão agora foragidos. Foi novamente presa a professora Marina Petrella, cuja extradição tinha sido negada em 2008 pelo presidente francês Nicolas Sarkozy. Hoje com 63 anos, ela trabalha ou trabalhava como assistente social perto de Paris.

Emmanuel Macron, que será candidato à reeleição no próximo ano, ao destruir a “doutrina Mitterrand” quis melhorar suas relações com a Itália e, ao mesmo tempo, retirar de Marine Le Pen, candidata da extrema-direita francesa tida como favorita, um de seus argumentos. Porém, sua vergonhosa e desumana decisão contra idosos acabou com a legendária imagem da França de país acolhedor humanitário e, pior, mostrou uma França incapaz de honrar sua palavra. Hoje Macron manda prender dez, quantos autorizará extraditar amanhã?

A chamada “doutrina Mitterrand” não foi um compromisso assumido apenas pelo antigo presidente. Embora se baseasse numa declaração oral feita por Mitterrand, devidamente transcrita, e não numa lei ou decreto, tinha a validade de um compromisso firmado pela França, como Estado, com os perseguidos por ela recolhidos. Ao romper de maneira irresponsável uma doutrina já incorporada, há mais de 40 anos, na política francesa de asilo, Macron coloca em dúvida a validade todos os processos de anistia, de acolha, de perdão celebrados pela França e instaura a insegurança, principalmente diante da possibilidade de uma vitória de Marine Le Pen no próximo ano, oferecendo um importante precedente para a anulação dos asilos concedidos até hoje a refugiados.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.