Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Coronavírus e a Comunidade internacional: catástrofe relatada na Índia, desastre subestimado no Brasil?

Foto: Ingo Roesler/Getty Images

O recente e grave surto da epidemia na Índia causou pânico na mídia europeia e norte-americana. Este surto mobilizou a “comunidade internacional”, ou seja, os Estados Unidos e os seus “aliados” europeus, e à qual se juntou também a Rússia, em solidariedade ética com Nova Delhi, violentamente atingida pela Covid-19. No entanto, essa solidariedade deve ser bem compreendida como forma de impedir a difusão universal da variante local indiana, a B.1.617, capaz de burlar as defesas conquistadas com as vacinas disponíveis até o momento. Nos últimos dias, a Índia atravessou a linha simbólica de 200.000 vítimas e o nível de contaminação está acelerando.

No Brasil, no silêncio da mídia, o marco de 400.000 mortes foi atingido em 29 de abril, e os especialistas preveem um futuro preocupante. Uma variante brasileira, P1, que sem dúvida é o anúncio de outras, continua a infectar e a matar. Os vizinhos do Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, vem sendo, há várias semanas, vítimas da P1 brasileira, dada a impossibilidade de controle do vírus em suas fronteiras. A “comunidade internacional” permanece por enquanto indiferente. Os brasileiros, na ausência de solidariedade, estão proibidos de viajar para a Europa e para os Estados Unidos.

A dramatização da situação sanitária na Índia, e a falta de empatia com o que vem ocorrendo com os brasileiros e com os seus vizinhos é algo a se questionar. Como podemos compreender este duplo discurso da “comunidade internacional”? Por que a Índia se beneficiou da atenção imediata dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da França? A Índia recebeu respiradores, ventiladores e equipamento gerador de oxigênio do Reino Unido e da França. Os Estados Unidos permitiram o envio de componentes de vacinas e respiradores. A Alemanha, o Canadá e a Rússia indicaram que se juntarão a este esforço coletivo. O Brasil, igualmente afetado e perigoso — uma vez que é um transmissor de variantes transfronteiriças — não mobilizou e não parece até o momento mobilizar nenhum governo de forma positiva. Na melhor das hipóteses, ou na pior delas, a imprensa escrita e a televisão internacionais ocasionalmente proporcionam uma compaixão distante face às imagens duras e dramáticas então em circulação.

O Brasil e a Índia são países emergentes, ambos membros do G-20 e do BRICS (Brasil/Rússia/China/África do Sul). Ambos foram, e provavelmente serão novamente solicitados e cortejados pelas grandes potências, devido ao seu peso econômico, militar, cultural, desportivo e diplomático regional. O interesse “ocidental” acerca do Brasil e da Índia, assim como o interesse de Moscou permanece. Como tal, a sua situação sanitária, agora seriamente comprometida, deveria ter suscitado uma reação de idêntica solidariedade geopolítica, bem como de assistência imediata aos países de seu entorno em situação de perigo, garantindo uma contenção do vírus. Quer seja brasileiro ou indiano, as variantes da Covid-19 ignoram fronteiras e constituem uma ameaça internacional potencialmente perigosa. Para tentar responder a esse paradoxo, que à primeira vista é difícil de compreender, podemos seguir duas pistas:

A primeira é estrutural. Há potências emergentes e potências emergentes. O estado e o calibre nacional do Brasil não são o mesmo da Índia. Existe, evidentemente, um diferencial demográfico. Existe também um fosso tecnológico e econômico que favorece Nova Delhi, Estado que preservou áreas de autonomia nacional. Ao contrário do Brasil, que é econômica, financeira e tecnologicamente dependente das potências “centrais”, inclusive, aliás, da própria Índia. Há, por fim, a questão geoestratégica, que revela situações que estão bastante distantes umas das outras. A Índia aparece como um contrapeso na batalha travada pela “comunidade internacional/ocidental” com a China. O Brasil não equilibra nada na América Latina. Além disso, o Brasil não é uma potência nuclear. Suspendeu as suas instalações e sua investigação nuclear militar em 1990 e aderiu ao TNP (Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares) em 1997.

A segunda pista é conjuntural. O atual líder do Brasil, Jair Bolsonaro, que é tão imprevisível como incompetente, mergulhou o seu país num caos multissetorial. O caos econômico, que acaba, muitas vezes, enfraquecendo os instrumentos energéticos, industriais, tecnológicos e financeiros necessários para manter a autonomia nacional. O caos diplomático, ao rejeitar todas as formas de multilateralismo, desde a COP sobre alterações climáticas à UNASUR, ao multiplicar declarações equivocadas, feitas no calor do momento, gerando crises bilaterais, da Argentina até a França, passando pela China. Finalmente, o caos sanitário, tendo o executivo abandonado voluntariamente o Brasil ao coronavírus. Jair Bolsonaro usou e abusou de quatro ministros da Saúde em menos de três anos. Não foi esboçada qualquer coordenação por parte da Federação para proteger a população de forma articulada. Pelo contrário. Criou-se uma tensão permanente entre o Palácio do Planalto e governadores e prefeitos, que buscaram lidar com a situação dentro de suas possibilidades de ação.

Devemos sem dúvida ver aí as razões ocultas para o comportamento divergente da “comunidade internacional”: uma clara solidariedade com a Índia e um cordão sanitário em relação ao Brasil. Na ausência de um interesse geopolítico equivalente, não deixou de existir um perigo sanitário na vizinhança, igualmente desestabilizador para o Brasil, para a Índia, mas também, a mais ou menos longo prazo, para os Estados Unidos, para a Grã-Bretanha, para a França e para muitos outros. “400.000 mortes”, disse o especialista em doenças infecciosas Júlio Croda, ao Jornal do Brasil, “isso é dramático. E a tragédia ainda não acabou. […] Faltam-nos vacinas. Faltam-nos centros de vacinação. A suspensão de medidas de isolamento social vai aumentar a contaminação, o que aumenta o risco de novas mutações perigosas do vírus”. Na Índia, Gautam Menon, professor de biologia, fez um comentário semelhante: “Nunca tínhamos vivido uma situação como esta antes. O sistema de saúde é incapaz de lidar com […] o aumento contínuo de pessoas infectadas”. A conclusão tirada por Ravi Gupta, professor de microbiologia clínica em Cambridge, coincide com a do médico brasileiro: esses cenários são “a incubadora perfeita para mutações virais”.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) emitiu um apelo de emergência: “A pandemia tem o potencial de desafiar qualquer sistema de saúde no mundo”, disse um dos seus porta-vozes. Houve períodos recentes em que, todos os dias, mais de 3.000 pessoas estavam morrendo em função do coronavírus no Brasil, assim como ocorreu agora na Índia, no final de abril. Enquanto se aguarda uma resposta internacional, a OMS sugeriu que a África do Sul, o Brasil e a Índia unissem forças para forçar a OMC (Organização Mundial do Comércio) a admitir a necessidade temporária de uma suspensão das patentes de vacinas Covid-19. Tratar diferentemente certos país, em regime emergencial, tem sua razão de ser. A emergência sanitária, para a OMS, é razão suficiente, e é por isso que ela deveria chamar à razão as potências mundiais.

Texto publicado originalmente em francês, em 04 de maio de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Coronavirus et communauté internationale: catastrophe signalée en Inde, désastre sous-estimé au Brésil?”. Tradução: Andrei Cezar da Silva e Adriana Cicera Amaral Fâncio Silva. Revisão de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean-Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar.