Recentemente, na Folha de S.Paulo, denunciando a inconstitucionalidade de um execrável Conselho Federal de Jornalismo, Rubens Approbato Machado e Ives Gandra Martins argumentavam que o jornalismo, diferentemente, por exemplo, do direito, da engenharia e da medicina, é uma atividade próxima da literatura, ‘em que […] a inspiração e o talento prescindem de autorização de um órgão controlador da profissão’.
Inspiração e água benta cada qual toma quanto quer. E talentos todos temos para nos expressar, embora precisemos buscá-los com humildade e perseverança: cavar entre cascalhos até encontrar pequenos rubis e esmeraldas, pepitas de ouro, ou quem sabe um belo diamante.
Inspiração não falta. O problema, como todos os inspirados bem sabem, é o trabalho que dá conquistar esse dom todos os dias. Palavras do poeta Mario Quintana:
‘Às vezes não vem nada e eu não escrevo, e digo: ‘Puxa, a lagoa secou e só ficou o jacaré’, mas depois, de repente, vem aquela coisa, aquele relâmpago, aquele flapt, o santo baixou, e a gente tem que ajudar o santo, puxá-lo pelos pés.’
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Inspiração, coisa sagrada. E, como tudo o que é sagrado, é ao mesmo tempo segredo e coisa pública. Há mais ou menos dois meses, num restaurante, estava eu conversando com minha esposa sobre projetos para novos livros, e um dos garçons, atento à nossa conversa, pediu-me, constrangido mas resoluto, que lhe desse alguma ‘dica’ para escrever melhor. Contou-nos que andava possuído pelo desejo de ser escritor, e não conseguira se conter ao ver em mim alguém que pudesse orientá-lo. Recomendei-lhe um determinado livro, e por aí ficamos.
Reencontrei o rapaz esta semana, no mesmo restaurante. Acabara de ler o livro, por ele qualificado de ‘inspirador’. Descobrira, a propósito, que escrever dava muito mais trabalho do que carregar bandeja. Que a inspiração pressupõe procurar a inspiração. Que escrever requer intensidade de vida.
No jornalismo, inspiração não pode ser luxo. Deve ser atmosfera contínua. A qualidade do texto, a metáfora, pequenas ou grandes ousadias verbais, títulos mais atraentes, fuga do lugar-comum, capacidade de transcender o fato mais comezinho, por mais que o jornalista se sinta um mero relator de fatos…
Se a lagoa secou e ficou apenas o jacaré, não há de ser nada. Estar inspirado diariamente é, nesta hora, olhar o jacaré. Ir para cima dele. E fazer para o leitor uma sopa do bicho.
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Doutor em Educação pela USP e escritor