No dia 9 de junho, o presidente argentino, Alberto Fernández, em encontro oficial com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, disse que não é só latino-americanista, mas europeísta, já que “los mexicanos salieron de los índios, los brasileros salieron de la selva, pero nosotros los argentinos llegamos de los barcos”. Depois se desculpou dizendo que queria prestar honras à parte dos imigrantes que compõem a sociedade argentina. É compreensível, dentro da sua visão de mundo. Mas a fala também desencadeou outros fatos observáveis:
1. As mídias alternativas no Brasil, tão prontas para protestar contra os disparates do Bolsonaro e seus aliados, não disseram nada sobre esse fato;
2. No Brasil, vieram veementes protestos de Eduardo Bolsonaro, um político que declara submissão política aberta aos Estados Unidos e Israel;
3. De dentro da Argentina, têm partido veementes protestos, sobretudo de organizações indígenas, que consideram que o presidente ignorou a existência desses povos.
Os dois primeiros fatos demonstram a mesma coisa: na política cotidiana, é raro encontrar atitudes coerentes e eticamente fundamentadas; o mais comum é atacar os adversários e proteger os aliados. Já o terceiro fato diz muito sobre o colonialismo interno, o processo histórico pelo qual os poderes à frente dos Estados latino-americanos perpetuam a opressão colonial sobre seu povo.
A continuidade da colonização durante e após os períodos de domínio europeu sobre a América Latina sempre foi sentida e vivida pelos povos desses países, já que a própria diversidade social e cultural nas colônias não era algo horizontal e harmônico, mas sim dissociativo e conflitivo. Os colonizadores só podiam implantar seu projeto se aliando com os patrões locais. Numa economia colonial, a propriedade das fazendas, a administração dos portos e a burocracia administrativa são atividades necessárias para organizar a exploração do trabalho dos colonizados e a extração de matérias-primas. A essas atividades correspondem setores sociais específicos, formados não necessariamente por estrangeiros espanhóis e portugueses, mas por seus descendentes nascidos na colônia, bem como castas privilegiadas das populações nativas. Já em 1928, Mariátegui (2007, p. 10) mostrava que as independências dos países sul-americanos, em vez de desbaratar o regime colonial, terminaram por reforçá-lo, passando a ser dirigido por oligarquias internas que chama de gamonalismo, mas que no Brasil podemos chamar de coronelismo: “mientras la Conquista engendra totalmente el proceso de la formación de nuestra economía colonial, la Independencia aparece determinada y dominada por ese proceso”.
O colonialismo interno foi um conceito usado em 1965 por Rodolfo Stavenhagem (2014, p. 162): “as regiões subdesenvolvidas de nossos países fazem às vezes de colônias internas”: se dá “uma relação orgânica, estrutural entre um polo de crescimento ou metrópole em desenvolvimento e sua colônia interna atrasada, subdesenvolvida e em crescente subdesenvolvimento”. Esse colonialismo interno é “talvez o maior obstáculo ao desenvolvimento econômico e social da América Latina”. Em 1969, Pablo González Casanova (2009) observava que os conceitos tradicionalmente utilizados nas ciências sociais para analisar as relações entre países (como dependência e fronteiras) poderiam servir para analisar as relações sociais num mesmo território. Esse processo é fruto do desenvolvimento desigual, com regiões subdesenvolvidas frente aos centros de acumulação de capital, e populações alijadas dos processos de desenvolvimento.
Essa noção foi incorporada na Bolívia por Silvia Rivera Cusicanqui (2010), e pelos pesquisadores do chamado grupo Modernidade/Colonialidade, incluindo Walter Mignolo e Aníbal Quijano, que tornou célebre a expressão “colonialidade do poder”. O termo substitui o sufixo “ismo” por um sentido de permanência, de estado de ser. Pode-se falar portanto em colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza (SANDOVAL-FORERO, 2021).
Podemos seguir argumentando em como as “nações” latino-americanas seguiram colonizando o território após suas respectivas independências em dois processos, que na verdade são o mesmo: as guerras entre Estados e as expedições internas de colonização.
Após o ciclo de emancipações, no início dos 1800, houve tantas guerras que não cabem nos livros de História. Aliás, os livros de História (notadamente no Brasil) contam narrativas heroicas de independência, falam dos governantes locais, mas é muito difícil que um estudante compreenda o processo histórico sem conhecer a Guerra da Cisplatina (1825-1828), a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870 — chamada estranhamente no Brasil como Guerra do Paraguai), a Guerra do Pacífico (1879-1883), a Revolução Acreana (1899-1903) e a Guerra do Chaco (1932-1935). Todas elas continuaram redefinindo os territórios dos países sul-americanos após o período de independências.
Em 1964 cantava Violeta Parra versos que têm muito a ver com esse contexto de conflitos internos:
Los pueblos americanos se sienten acongojados
porque los gobernadores los tienen aprisionados.
¿Cuándo será ese cuando, señor fiscal,
que la América sea solo un pilar?
Solo un pilar, ay sí, y una bandera.
Que terminen las bullas en la frontera.
¡Por un puña’o ’e tierra no me armen guerra!
Certamente daí vem a sina de divisões e rixas social, histórica e culturalmente construídas entre populações sul-americanas. Ao crescer nos anos 1990, eu sentia claramente em meu entorno que um brasileiro precisaria odiar os argentinos por algum motivo. Mesmo que fosse uma brincadeira séria tão irracionalmente explicável como os gostos pelo futebol. Outras pendengas também são de conhecimento notório: entre paraguaios e brasileiros, entre peruanos e chilenos, entre colombianos e venezuelanos. Mas estudar os contextos daquelas guerras nos torna mais conscientes do imperialismo, e de como as divisões internas foram em grande parte arquitetadas pelo sempre presente colonizador estrangeiro — destacadamente sob o signo do domínio britânico — e ainda que não se pode confundir os senhores da guerra de cada país com os respectivos povos.
O outro aspecto desse processo foram as expedições colonizadoras. Aí ficaram mais evidentes os continuados extermínios das populações indígenas. No Brasil, os bandeirantes que saíram de São Paulo — destacando-se a liderança de Raposo Tavares nas expedições e guerras de destruição das missões guaraníticas em 1628 (na região do Guaíra), 1636 (na região do Tape) e 1648 (na região do Itatim). Cem anos mais tarde, uma nova sequência de expedições para a região dos Sete Povos das Missões, resultou numa guerra de grandes proporções (1753-1756), em que os Guaranis resistiram ao custo de sua vida aos bandos espanhóis e portugueses aliados a outros indígenas e mestiços.
Ao longo dos séculos XIX e XX, têm se dado no Brasil frentes de expansão territorial, em semelhantes lógicas, chamadas durante o governo Vargas de “Marcha para o Oeste”. A região Oeste do Paraná, por sua vez, foi lugar de empresas colonizadoras da produção de erva mate e obras de infraestrutura, deslocando povos indígenas e outras comunidades tradicionais. As novas ocupações, por descendentes de imigrantes europeus, vieram a constituir a imagem atual de que a região é formada apenas por essas etnias, invisibilizando, até hoje, as presenças indígenas e afrodescendentes.
Não é diferente do que aconteceu na Argentina. As Campanhas do Deserto, ou Batalhas do Deserto, foram expedições que partiram do porto de Buenos Aires para o sul e para o norte do país, especialmente destinadas a aniquilar as populações indígenas, como os mapuche e tehuelche, ao sul, e os pampas e charrúas, ao norte. A primeira série de expedições se deu em 1833-1834, sob comando do general Juan Manuel de Rosas, e o maior e mais violento período se deu entre 1878-1885, sob a liderança do general Júlio Argentino Roca.
Essas expedições, assim como no Brasil, tiveram por pano de fundo a ideia de vazio demográfico ou territorial, a ideia de que os militares estariam se deslocando para ocupar regiões não habitadas. Porém, a própria história demonstrou que se tratou de guerras de conquista e extermínio, portanto, que essas regiões eram de fato ocupadas por povos originários e mestiços. A perversidade da ideia de vazio demográfico está em como essa ideia foi propagada no plano cultural. Muita gente, sobretudo no Brasil, acredita que “não existem índios na Argentina” e que os hermanos são descendentes só de europeus. A perversidade está ainda no fato mesmo de que os colonizadores, ao exterminar, terminaram produzindo um vazio que outrora não existia. Não certamente um vazio, mas a dispersão dessas comunidades, apesar de muitas delas persistirem unidas até hoje.
Fica assim demonstrada a gravidade da fala recente do presidente argentino, bem como da sua justificativa, de querer homenagear os imigrantes, perpetuando a invisibilização dos povos originários. Nesse sentido, “os argentinos vieram de barco” significa que os demais habitantes do país não são argentinos, ou seja, são excluídos da fala do presidente de seu próprio país. Excluídos da fala, da terra, das instituições políticas.
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Júlio da Silveira Moreira é professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, onde atua no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos. Realiza estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutor em Sociologia. Bacharel em Direito.
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Referências
GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. De la sociología del poder a la sociología de la explotación: pensar América Latina en el siglo XXI. Buenos Aires: CLACSO, 2009.
MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 Ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2007.
PARRA, Violeta. Los Pueblos Americanos. Cancioneros.com Diário Digital de Música de Autor. Disponível em: <www.cancioneros.com>. Acesso em 11 jun. 2021.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires : Tinta Limón, 2010.
SANDOVAL-FORERO, Eduardo Andrés. Sentipensar intercultural y metodología para la sustentabilidad de desarrollos otros. Los Mochis: Ed. Universidad Autónoma Indígena de México, 2021.
STAVENHAGEN, Rodolfo. Sete teses equivocadas sobre América Latina. Sociedade e Cultura, 17(1), 2014, p. 159-169.