Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como se fabrica um mito

No ‘Mais!’ da Folha de S. Paulo de domingo (1/11) duas fotos ilustravam a violência das duas maiores cidades brasileiras (pág. 5). O tema do caderno era o submundo do crime organizado e o editor escolheu uma foto sobre a violência no Rio e outra sobre São Paulo.


A foto tomada no Rio (em 23/10/2009) reproduzia uma cena que poderia ter sido copiada de um filme de ação da HBO: três policiais com armas automáticas correndo e atirando numa rua típica de subúrbio carioca. Já a foto de São Paulo foi tomada depois do estado de sítio imposto pelo PCC à maior cidade brasileira (em 7/8/2006): os escombros de um ônibus ainda fumegante e, em primeiro plano, um vira-latas sentadinho.


No Rio, o flagrante da guerra urbana; em Sampa, a poesia da destruição. Foi artístico o critério que norteou a escolha das fotos, o editor buscava o contraste. Acabou por reproduzir um estereótipo que comanda os impulsos dos porteiros das redações brasileiras.


Sobras e ‘calhaus’


Não há a menor dúvida de que o Rio converteu-se numa praça de guerra. Porém, São Paulo não fica atrás. Enquanto a guerra paulistana se trava na periferia, no Rio esta periferia está encravada no coração da cidade. O dirigente do Afro-Reggae Evandro da Silva foi assassinado no centro da cidade, não muito longe de um dos novos points da boemia carioca.


Seria impossível e deletério tentar montar um quadro comparativo sobre a violência nas duas maiores cidades brasileiras. Além da natureza e organização social diferenciadas, cada uma tem o seu ‘modelo de negócios’ para o crime organizado. Por mais objetivos e afinados que fossem os paradigmas para uma eventual comparação, as estatísticas seriam incapazes de produzir algum tipo de cotejo.


A imagem de violência de cada uma das nossas metrópoles é fabricada por dados objetivos e subjetivos, todos no âmbito da mídia. A Rede Globo está sediada no Rio, seus telejornais obedecem a padrões de qualidade jornalística e, como acontece há pelo menos três décadas, pautam os meios de comunicação de todo o país. Não poderia ser diferente: o Jornal Nacional tem a obrigação de investir pesadamente na cobertura do que acontece na cidade onde é produzido e emitido.


Na mídia impressa, ocorre o contrário: todos os quatro semanários de informação são produzidos em São Paulo e, dos três jornalões de referência nacional, dois estão fincados na Paulicéia. E não apenas em seus nomes: o Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo nasceram e cresceram como jornais vinculados aos interesses regionais no âmbito da política e da economia. Suas coberturas locais e de polícia sempre foram menosprezadas e secundarizadas (a despeito da excelência dos seus profissionais). A burguesia paulista sempre andou de nariz empinado e de olho no próprio umbigo. Como conseqüência, o forte do jornalismo paulista nunca foi o jornalismo de cidade, geralmente transferido às rádios, tradicionalmente competentes e ágeis.


A prova está nos cadernos ditos ‘locais’ – os mais mirrados, os mais descaracterizados e aviltados, onde cabe tudo: a vida da cidade, os desastres (inclusive ocorridos em outras regiões), o noticiário leve (que os marqueteiros acham indispensável para atrair o público jovem e feminino), a meteorologia, as crônicas, os ‘calhaus’ (anúncios da própria empresa) e as sobras dos anúncios classificados. Tudo isso em 8 ou, no máximo, 12 páginas (sendo que a capa é geralmente ocupada por um grande anúncio colorido).


Operação audaciosa


Na Folha o caderno local é obrigado a absorver a página de ‘Saúde’ e uma coisa chamada ‘Folha Corrida’, espécie de pseudo-capa com grandes fotos sobre mundanidades e chamadas que sobraram da verdadeira capa sem ‘agregar valor’ (como diriam os burocratas ou jornalistas de economia): não acrescentam informações, não oferecem contextos e espremem ainda mais a cobertura urbana.


O caderno local do Estadão é bizarro: sofre de esquizofrenia e tem um alter ego. Na edição que circula na cidade onde é impresso chama-se ‘Metrópole’, nas demais regiões chama-se ‘Cidades’. O conteúdo, porém, é exatamente o mesmo e nesta ambigüidade está a prova do descaso da empresa pela cobertura local. Confunde o local do Rio com o local de São Paulo e acaba liquidando a razão de ser do jornalismo: dar ao leitor uma noção correta do que se passa à sua volta.


E onde é noticiada a violência paulistana? Ela existe, está crescendo: no sábado (31/10, pág. C-1), com destaque na primeira página, a Folha anunciou que o crime cresce no estado pelo terceiro trimestre consecutivo. Da quinta-feira (29/10) até o domingo, os dois cadernos ‘locais’ paulistanos deixaram de se concentrar na violência carioca obrigados a noticiar uma blitz da Policia Civil que prendeu 2.191 pessoas, a queda de um avião da FAB na Amazônia e o salvamento de 9 dos 11 passageiros – e porque nesses dias veio à luz a informação sobre o quase-linchamento de uma estudante de turismo que apareceu na faculdade com uma audaciosa minissaia.


O crime organizado paulistano, isto é, o PCC, só deu o ar de sua graça uma única vez (na Folha, quinta-feira, 29). Neste intervalo não houve chacinas, não houve confrontos entre gangues, não houve assassinatos nem arrastões em condomínios.


O crime organizado paulistano não tem vez na mídia paulistana. No assalto ao carro-forte em Amparo (SP) também foi usada uma metralhadora pesada e, como operação, foi muito mais audaciosa porque minuciosamente planejada, ao contrário do ataque ao helicóptero da PM no Morro dos Macacos, obra do acaso e/ou fatalidade (ver, neste Observatório, ‘Os senhores da guerra e do crime‘). Mereceu uma cobertura insignificante. O helicóptero abatido no Rio, no entanto, continua ocupando parte do espaço ‘local’ dos competidores paulistanos.


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O Globo é o único jornalão de referência nacional editado no Rio, também o único que tem nas veias o DNA de vespertino. Esta ascendência e pedigree dão ao jornal uma energia que não se encontra nos jornalões paulistanos. Tem inúmeros defeitos de organização e apresentação, mas a sua trepidação traz consigo o empenho em enxergar o confronto com o narcoterrorismo como uma questão além-Rio, de segurança nacional.