O Peru, desde o seu retorno à democracia, em 2000, tem sistematicamente turvado os prognósticos eleitorais. Cada consulta traz sua cota de surpresas, que escapam a qualquer forma de racionalidade ideológica e partidária
Os peruanos, chamados a eleger o seu presidente neste mês de junho, confirmaram no primeiro turno, no dia 11 de abril, esta forte tendência. Eles selecionaram dois finalistas que se opuseram à imprensa, como os pesquisadores: um professor, sindicalista, desconhecido, Pedro Castillo, e Keiko Fujimori, herdeira de uma dinastia de moral flutuante. Como acontece neste tipo de circunstâncias, a campanha endureceu os desafios. Paradoxalmente, porém, os confrontos televisivos entre os dois antagonistas reorientaram os seus respectivos perfis. Com efeito, os slogans agitados pelos partidários de ambas as partes não tiveram nuances: Keiko é corrupta e Castillo, comunista e liberticida. Os debates, em contrapartida, principalmente o último, em Arequipa, nivelaram muitas das suas asperezas contraditórias.
Neste tipo de circunstâncias, a leitura das profissões de fé, os respectivos programas, da Força Popular, para Keiko Fujimori, e do Peru Livre, para Pedro Castillo, permite talvez ver mais claro o futuro, tomando conhecimento das intenções iniciais, e sem dúvida profundas, de ambas as partes. Eles estão disponíveis para todos na internet. Mas quem hoje dedica algum tempo para tomar conhecimento de documentos, com centenas de páginas, publicados por obrigação legal?
A ordem e os títulos das prioridades, hierarquizados de maneira distinta, revelam fundamentos ideológicos opostos. Esta divergência é confirmada pela leitura dos princípios e valores que justificam estas escolhas. Uma, Keiko, defende a continuidade, o fortalecimento, da “obra” realizada pelo seu pai, Alberto, de 1990 a 2000. Alberto encontra-se atualmente preso por violação de direitos e corrupção. O outro, Castillo, pretende derrubar a mesa para romper com um Estado mínimo, “neoliberal”, que ignora os pobres e os indígenas dos Andes.
A Força Popular alinha suas propostas na seguinte ordem: em 1, a economia, o emprego e o espírito empresarial; em 2, a saúde; em 3, a ordem pública e a segurança; em 4, a política externa, a defesa e a gestão de catástrofes; em 5, a educação e a cultura; em 6, a luta contra a corrupção; em 7, os serviços públicos de base; em 8, a habitação; em 9, as reformas políticas; em 10, a luta contra a pobreza; em 11, a modernização e a descentralização da ação pública; em 12, a política à respeito da discriminação das mulheres; em 13, os jovens.
O Peru Livre defende suas prioridades de outra forma: em 1, a nova Constituição; em 2, o novo regime econômico; em 3, a escola pública libertadora; em 4, a saúde pública respondendo às expectativas populares; em 5, o transporte e os meios de comunicação; em 6, fazer da agricultura a garantia da segurança nacional; em 7, o meio ambiente; em 8, a cultura e turismo; em 9, a descentralização; em 10, a política social; em 11, a política anticorrupção; em 12, segurança cidadã; em 13, os direitos humanos; em 14, a justiça; em 15, a mulher socialista; em 16, as principais fontes de riqueza; em 17, a soberania; em 18, a postura em relação aos empresários privados; em 19, os direitos sobre o mar territorial; em 20, a política exterior.
Por que esta ordem e estes títulos? Porque são coerentes, diz-nos a Força Popular, com a Constituição de 1993 (NB, ou seja, com a Constituição de Alberto Fujimori). Uma Constituição que rompeu com o legado da “ditadura militar (..), a Constituição de 1979, os anos de 1970 e 1980, anos de pobreza e desordem”. A Constituição de 1993, por outro lado, é uma Constituição de “prosperidade” que defende “a família, o direito à vida desde a concepção, a liberdade de educação, honra as forças armadas, -heróis da luta antiterrorista-, o mercado livre, com corretivos sociais”. Uma Constituição que reconhece a “igualdade perante a lei, a democracia e os partidos políticos”. Resumindo, o “fujimorismo”, segundo o seu programa, é “um sentimento popular (…) que exige a continuação de muito do que foi construído e iniciado nos anos 90, e do qual todos os peruanos se beneficiaram”.
O Peru Livre acredita que seu programa se dirige a todos os peruanos, mas só faz sentido se “o Peru se reconhecer como um estado plurinacional”. “O Peru Livre surgiu no Peru profundo, nos Andes”. Peru Livre ressalta então que a sua criação “pretende ser uma resposta à direita, (..) e o que é mais importante, à esquerda tradicional”. O partido se define como “marxista, leninista e mariatéguista (…) democrático, descentralizador, humanista, anti-imperialista”. No entanto, o programa apresentado, “não visa a militância ortodoxa, mas apresenta-se como (..) um guia apenas, aberto à crítica”. E acrescentou em sua apresentação, “um documento que questiona o neoliberalismo, (..) para restaurar um estado mínimo ‘dependente pela ditadura do mercado’”. Daí o slogan do partido: “Chega de pobres em um país rico!” As silhuetas ideológicas de uma Keiko Fujimori, e do outro, Pedro Castillo, ficam mais evidentes à medida que se leem as suas intenções iniciais, que foram apagadas pela campanha eleitoral.
Texto publicado originalmente em francês, em 03 de junho de 2021, na seção ‘Analyses no Institut de Relations Internationales et stratégiques, com o título original “ Enjeux et programmes dans les élections présidentielles au Pérou ce dimanche 6 juin”. Tradução de Mónica Guerrero Garay e Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos. Revisão de Pedro Varoni e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.