A primeira vez que Sérgio Camargo posou para uma foto com um livro na mão foi para “denunciar” os títulos degenerados prontos para arder na fogueira da Fundação Palmares, que ele preside. Os autores são Karl Marx, que ele estranha ter tantos títulos na sua biblioteca (“os presidentes que me antecederam achavam que Marx era um negão”), Che Guevara (um “racista/homofóbico”, segundo ele) e Josef Stalin, “genocida”. Os outros autores que levam o selo de “doutrinação marxista” são Max Weber, Eric Hobsbawm, H. G. Wells, Antonio Gramsci, Simone de Beauvoir, Carlos Marighela, Celso Furtado, Marco Antônio Villa, Gógol, Tolstói, Durkheim, Aron, Reich e Malinowski. Trata-se de uma “limpeza doutrinária” segundo os ideais do presidente, que se qualifica “negro de direita”, e de seu assessor, o jornalista autodenominado “conservador”, Marco Frenette, que trabalhava como assessor de Roberto Alvim — aquele ministro que plagiou o discurso nazista e foi Joseph Goebbels por um dia.
Entre motociatas à Mussolini e queima de livros à Adolf Hitler, nossa cultura segue esmagada, num governo onde livros passam a ser denominados “objeto de elite” com taxação de 20% no preço de capa, porque “pobres não leem”. Camargo e Frenette justificam o expurgo como “o desmonte de uma escola de delinquência”. E dizem que 54% da biblioteca da Fundação, que ostenta Cultural no nome, estão tomados por “obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha”. Camargo explica: “exonerar esquerdistas, desaparelhar o órgão, é minha prerrogativa”.
O dia 11 de junho de 2021, no qual Camargo e Frenette fizeram o “livramento”, poderia entrar no cenário da ficção científica Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, em que o corpo de bombeiros usa lança-chamas para queimar bibliotecas inteiras — alguns cidadãos memorizam antes livros inteiros para não esquecer. O ato de Camargo revive o padre dominicano na Florença renascentista, Girolamo Savonarola, que queimava publicamente livros, obras de arte e objetos considerados produtos da vaidade humana: Ovídio, Dante, Botticelli, Boccaccio…
Se a prática germinar entre os imitadores bolsonaristas, vamos começar a destruir bibliotecas como aconteceu com a Alexandria e Sarajevo; já houve seguidores queimando livros de Paulo Coelho, em protesto às posições políticas do escritor. Sem que um inerte secretário Malhação de Cultura, Mario Frias, movesse uma palha para impedir a “limpeza”.
Não faz mal. No mesmo instante em que ouviu o desprezo de Sérgio Camargo pela metade da biblioteca da Fundação, o jornalista e escritor Fernando Morais declarou, na coluna de Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo e na televisão, o seu interesse pelas “obras descartáveis”. Aqui, Fernando explica:
“Meu único interesse é tirar as obras das mãos dessa gente. Recolher o que a Fundação Palmares descarta e levar para a cidade de Mariana, em Minas, onde criei um instituto para acolher acervos de política contemporânea brasileira. Já recolhi três caminhões do acervo de José Dirceu, e uns 30 anos de originais de Carlos Lacerda na correspondência para seu advogado dos Estados Unidos, onde o político se exilou fugindo do Juscelino Kubitschek. Além de todas as entrevistas que fiz, incluindo Fidel Castro, Kadhafi, José Sarney, Alzirinha Vargas… e Sergio Motta, muito antes dos tucanos, detalhando como operava para buscar recursos para o jornal Movimento, com Raimundo Rodrigues Pereira, conhecido como jornal do PCdoB…”
A biblioteca de Mariana começou com a doação de um mecenas amante da cultura e ganhou a parceria das Universidades Federais de Ouro Preto e do Paraná, contando com assistência de dois professores, 18 estagiários e a implementação de um banco de dados. Está virando um Centro de Memória Política. Mas Fernando Morais já declarou que se não tivesse o instituto levaria o acervo para a sua casa mesmo.
“Meu interesse não é apropriar; é preservar, salvar, tirar o acervo das mãos desse povo para quem livros não fazem a menor diferença, e colocar tudo em mãos honestas e saudáveis.”
Sérgio Camargo declarou a desimportância das obras da Fundação e despertou a revolta e o interesse daquela “elite” que lê livros. Semana passada, o deputado Marcelo Freixo entrou com uma ação contra ele, pedindo a suspensão da exclusão de qualquer patrimônio da Fundação Palmares. O professor de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine Ribeiro, publicou um artigo na Folha (19/6) lamentando o ato, “que lembra a queima de livros efetuada pelos nazistas”.
O cineasta Silvio Tendler lançou um manifesto com fotogramas de três momentos de queima de livros no regime nazista, com, até o momento, 1800 assinaturas:
“Vamos salvar os livros da Fundação Palmares. Não podemos assistir calados ao desmonte da cultura brasileira. Pela recriação do Ministério da Cultura! Pela Segurança do patrimônio da Fundação Palmares”.
Se você encontrar um balaio com livros pelo caminho, não acenda fósforos. Recolha, leve tudo para uma escola, uma comunidade, uma esquina. A “elite” da rua vai adorar. A “elite” não é necessariamente marxista como pensam os bolsonaristas. Já tivemos uma direita que lia livros. Integralistas como Plínio Salgado liam poemas, como ele fez na Semana de Arte Moderna de 22. Gustavo Barroso foi presidente da Academia Brasileira de Letras. Câmara Cascudo e San Tiago Dantas foram integralistas e integralista foi dom Hélder Câmara.
Quem tem horror de livros são os bolsonaristas. Se você tiver igualmente horror aos bolsonaristas, esconda-se numa biblioteca e erga um livro, como os padres costumavam exorcizar o demônio com a cruz. Por aí não há perigo de se deparar com um deles. Por precaução, lembre de memorizar o maior número de livros enquanto ainda estão nas estantes. Só não acenda fósforos contra o patrimônio da humanidade.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).