Acompanhar os Jogos Olímpicos de Tóquio tem sido muito interessante não apenas pelo aspecto esportivo, as conquistas, as histórias de superação, as derrotas, o contexto de excepcionalidade de uma Olimpíada sem público durante uma pandemia e todas as histórias que naturalmente envolvem um megaevento esportivo, mas também por ser possível verificar uma mudança profunda no estilo da cobertura esportiva televisiva brasileira.
Não é um fenômeno novo e vem se intensificando ao longo do tempo, mas é possível observar na cobertura destes jogos uma cobertura mais voltada para o entretenimento e para o lado torcedor do que em edições anteriores quando analisamos o Grupo Globo, que, com cinco canais entre a televisão aberta, a Globo, e fechada, o SporTV, é o maior retransmissor do evento. São vários os fatores que o exemplificam: a presença massiva de comentaristas que são ex-atletas, o tom excessivamente informal, a torcida mais inflamada que o habitual para competidores compatriotas e um foco muito maior nos atletas brasileiros em detrimento da competição como um todo.
Há muitos anos, desde que os eventos esportivos passaram a ser eventos cada vez mais cobiçados pelas televisões e caros na aquisição dos direitos de transmissão, que paulatinamente a cobertura foi perdendo parte da objetividade, imparcialidade e criticidade, apanágios próprios ao jornalismo tradicional, e passaram a ganhar um aspecto mais promocional, visando evidentemente vender o esporte como produto a ser consumido pelos telespectadores.
Esse processo se intensificou brutalmente conforme a internet passou a disputar essa audiência da televisão por meio de streaming de séries e filmes, como fazem a Netflix e a Amazon. Tal aumento concorrencial acabou valorizando ainda mais os eventos ao vivo, sobretudo os esportes, que dão uma vantagem substancial em relação à internet em virtude do seu delay ser muito menor. Mesmo que a transmissão dos jogos ocorra também em cada vez maior frequência pela internet, com o próprio Grupo Globo colocando à disposição do assinante do SporTV todos os eventos via GloboPlay, a sua plataforma digital de streaming, a televisão é a grande protagonista na transmissão de competições esportivas.
E o que tem se verificado na televisão na cobertura destes Jogos Olímpicos é uma abordagem muito mais enviesada para o lado do entretenimento do que para o da cobertura jornalística, havendo até uma certa confusão entre os papéis exercidos por aqueles que têm a missão de cobrir o evento. Isso ficou evidente em um caso em particular envolvendo a transmissão do skate, modalidade estreante que recebeu grande atenção pelo favoritismo dos esportistas brasileiros e que resultou nas duas primeiras medalhas de prata ao País com Kelvin Hoefler e Rayssa Leal.
Após a conquista de Hoefler, uma das competidoras brasileiras do skate feminino nas Olimpíadas, a paulista Leticia Bufoni, foi instada por seus seguidores a responder sobre o porquê do silêncio sobre a conquista do seu colega de equipe. A jovem usou suas redes sociais para expor um desentendimento entre o grupo brasileiro de skatistas presentes no Japão, a CBSK, Confederação Brasileira de Skate, e o jovem medalhista. O caso rapidamente ganhou enorme repercussão.
No SporTV, o caso foi discutido na edição do último dia 25 do programa Ohayo, um diário olímpico que discute os acontecimentos mais importantes do dia. O programa é um bom exemplo dessa cobertura voltada para o entretenimento: nos moldes de um talk show, os comentaristas, todos eles ex-atletas com exceção de um dos âncoras, o jornalista Marcelo Barreto, dialogam de forma muito informal sobre os Jogos Olímpicos. E na querela de Kelvin com Leticia, o tema resvalou em uma das contradições desse tipo de cobertura: o contratado do canal para comentar evento, o ex-skatista Bob Burnquist tomou a palavra para defender o trabalho da Confederação Brasileira de Skate.
No entanto, como o próprio fez questão de deixar claro em sua fala, ele fora o ex-presidente da mesma e foi o cabo eleitoral do seu sucessor e atual líder da organização, Eduardo Musa, que é uma das fontes do descontentamento do skatista Kelvin. Foi no mínimo embaraçoso observar esse conflito de interesses na figura de um contratado do canal para comentar um caso em que tem envolvimento tão próximo e foi ainda mais constrangedor reparar que a falta de mais jornalistas de formação naquele espaço impediu uma análise mais distante do caso. Em certo momento era difícil distinguir se se tratava de um programa sobre esporte com algum fundo jornalístico ou meramente um programa de mexericos dos bastidores da competição com partes politicamente interessadas.
Essa sensação é constante quando se assiste aos jogos pelo SporTV. A separação entre o objeto analisado e os analistas nunca pareceu tão pequena. As exceções ficam concentradas aos poucos eventos transmitidos em que não há brasileiros participando, caso por exemplo do basquete, que contou com uma cobertura mais equilibrada nos até aqui poucos jogos que tiveram espaço na grade dos quatro canais do canal por assinatura do Grupo Globo.
Para quem quer ter acesso a uma cobertura mais jornalística e ponderada faltam opções. Sobram ufanismo, gritos, diálogos inconvenientes e eventualmente um e outro desleixo ético.
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Wanderson Marçal é pós-graduando em história na PUC-São Paulo.