Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

América Latina em revisionismo democrático: Do Chile à Venezuela, passando pelo Peru

Foto: Journal International

As eleições no Chile, no Equador, no México e no Peru e as desordens sociais e políticas no Brasil, na Colômbia, na Nicarágua, em El Salvador, na Venezuela não têm, a priori, nenhum ponto em comum. Apesar disso, elas têm um PDC, um pequeno denominador comum: um revisionismo de caráter “transversal”, tanto geográfico quanto ideológico.

O revisionismo é, na política, um qualificativo quase sempre pejorativo. Trata-se, aqui, de uma simples constatação, aquela de uma democracia latino-americana cujos critérios fundamentais são “corrigidos”, hoje, por quase todos os governos e povos. Tais revisões são praticadas no Norte, assim como no Sul e no centro. Vindas da direita. Vindas da esquerda. Todas elas testemunham desvios de rota voluntários e conscientes, que, por sua vez, revelam a atualidade de um questionamento dirigido a um sistema que se propõe a resolver as contradições políticas e sociais de forma pacífica e eficaz. O panorama é violento. As liberdades foram amordaçadas na década de 1970, do México ao Uruguai, da Guatemala ao Chile, da Nicarágua à Argentina e ao Brasil, e restauradas, em meio à dor, à custa de difíceis compromissos, no final do século XX. Essa democracia, tão custosamente assegurada, demonstrava ser popular nas ruas e nas urnas. Centenas de milhares de argentinos, brasileiros, chilenos, nicaraguenses e uruguaios demonstravam, com efeito, uma alegria e um alívio coletivos ao darem adeus aos ditadores, expulsos por suas faltas morais, seus erros econômicos e seu fiasco social.

Vinte, trinta anos depois, o Estado de direito se encontra no zênite da dúvida. Os autocratas não recuperaram o poder, mas o que domina é a confusão democrática, a ponto de muitos da direita, propondo uma releitura, exporem-se a críticas virulentas de outros revisionistas, progressistas. Os adjetivos trocados, mais do que argumentos, aumentam a polêmica. O crime de confisco assume ares eruditos. De um a outro lado do espectro político, registra-se, por exemplo, a evocação do termo “democratura”. A rede democrática, como num campo de vôlei, assiste ao fluxo de bolas lançadas, uma mais forte que a outra, trazendo consigo potenciais retrocessos às liberdades.

Agora, julguemos. As regras democráticas são cada vez mais mal utilizadas. E o intuito é o de permitir, ou de proibir, as alternâncias. O apito inicial foi dado no Brasil, em 2016, com o impeachment inconstitucional de Dilma Rousseff, presidente de esquerda (PT) eleita e em exercício, por deputados vinculados ao sistema socioeconômico e midiático. A justiça ratificou essa interpretação partidária da Constituição ao destituir o ex-presidente Lula (PT) da campanha eleitoral de 2018, permitindo, assim, a vitória, por W.O., do ex-capitão Jair Bolsonaro, tenor da extrema direita. No dia seguinte à consulta, a justiça retirou Lula da prisão em 2019, restabelecendo seus direitos de cidadão.

Este novo espírito das leis, engessando alternâncias, foi adotado zelosamente por outros agentes. A Venezuela de Nicolas Maduro, em nome da democracia participativa, revisou as modalidades de seu processo eleitoral e elegeu, em 2017, uma Assembleia Constituinte sob medida. Além disso, longe de proceder com a elaboração de uma Carta Nacional, esta “Constituinte” fez substituir a Assembleia Legislativa que foi eleita em 2015. As autoridades nicaraguenses, Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, seguiram o exemplo: inibiram vários potenciais candidatos presidenciais para o pleito do próximo dia 7 de novembro de 2021, Cristiana Chamorro, Arturo Cruz, Felix Madariaga, Juan Sebastián Chamorro. Para piorar, foram também encarcerados vários sandinistas que, de forma pacífica, exerceram ativa dissidência, o que deu a Daniel Ortega, às vésperas da conclusão de seu mandato, uma provável vitória às custas de uma leitura policial da Carta nacional.

As leis vão também se transformando, de pouco em pouco, em letras mortas. Letras que, no entanto, figuram, em preto e branco, nos textos fundadores das Repúblicas “latinas”, sujeitas a distorções e interpretações não naturais. A Colômbia é socialmente afetada por doenças que há muito não são tratadas. Às vítimas das já conhecidas desigualdades estruturais e históricas acrescentam-se agora as vítimas da pandemia de Covid-19. Esses “demandantes” tomaram as ruas em abril de 2021, recusando-se a pagar impostos e exigindo mudanças. O descontentamento permanecia, em junho de 2021, em estado de espera indefinida, sem qualquer perspectiva de negociação. Um diálogo foi iniciado com o presidente Ivan Duque, diálogo este que, por falta de empenho do governo, resulta até o momento em mais becos sem saída, pois o percurso escolhido pelo atual inquilino do Palácio de Nariño é, para todos os efeitos, incompatível com a Constituição e com a democracia. Em realidade, as tropas e a polícia disparam munições de verdade contra os manifestantes.

O Presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, promoveu a campanha para as consultas legislativas e locais no dia 6 de junho de 2021. Não contra seus oponentes, ou não apenas contra eles, mas especialmente contra o Instituto Nacional Eleitoral, que tem o propósito de contrabalançar a onipotência do partido do Estado, o PRI, que administrou a vida eleitoral, sem compartilhá-la, a partir do Ministério do Interior (Secretaria de Governo). O chefe de estado salvadorenho, Nayib Bukele, estava descontente com seu parlamento no início de 2020. Para furar a resistência dos deputados, de modo a incentivá-los a votar em um projeto presidencial, Nayib Bukele, no dia 10 de fevereiro de 2020, adornou o Congresso com policiais e militares. Distribuídos na sala de debate, seus argumentos uniformizados convenceram as autoridades eleitas a prestar-lhes obediência, fato que garantiu ao presidente a positivação aguardada. Em 1º de maio de 2021, a fim de assegurar em sua mão um pós-venda democrático, demitiu nove juízes constitucionais, assim como o procurador-geral.

Os eleitores, os cidadãos, parecem estar em 2019, 2020 e 2021, cansados de suas instituições, cansados das democracias, surdos em relação às suas expectativas. Estão cansados, às vezes até indignados, com seus deputados e senadores, com seus partidos políticos, perdidos, ao menos, em relação às disputas pelo poder, e assim os interpelam em razão de negligenciarem o interesse geral. Os desafiam, assim, pela sua captura dos processos de tomada de decisão e dos recursos nacionais. Fartos, porém, de tentarem virar a mesa e se arriscarem a danos colaterais, os eleitores começam a desaparecer. A abstenção no Chile ultrapassou 80% em 13 de junho de 2021, no segundo turno da “regional”. Uma pesquisa do instituto chileno CEP (Centro de Estudos Públicos), de 29 de abril de 2021, deu o tom da toada: apenas 9% dos entrevistados confiam no presidente (de direita) Sebastián Piñera e 6% no Congresso (majoritariamente de centro-esquerda [1]).

Na Colômbia, o abandono das urnas aumenta à linha de 50%. Na Venezuela e nos países do Triângulo Norte (Guatemala; Honduras; El Salvador), os cidadãos, que precisam de um mínimo de sobrevivência, votam com os pés. Às centenas de milhares, eles seguem em frente, deixando para trás seus respectivos países. Em outros rincões, a escolha dos que participam, pune, uma vez mais, os errantes como rivais. No Chile, os vencedores das consultas constituintes e locais, por falta de um termo melhor, foram chamados de “independentes”. Pesquisas realizadas na Colômbia, em preparação às eleições presidenciais de maio de 2022, colocam em primeiro lugar os votos em branco e aqueles que a oferta política deixa insatisfeitos [2]. No Equador, um agitador, indígena e ambientalista, Yaku Pérez, fez tropeçar, no dia 7 de fevereiro de 2021, a direita tradicional e a esquerda bolivariana. No Peru, Pedro Castillo, um professor desconhecido das regiões andinas, sem nenhuma experiência eletiva e partidária, no dia 6 de junho de 2021, estilhaça um teto de vidro, deixando os candidatos metropolitanos com afiliações mais ou menos previsíveis, à margem — tanto à direita quanto à esquerda.

A democracia latino-americana está sendo cada vez mais “revisada” por aqueles que estão no poder, sejam eles bolivarianos, conservadores, liberais ou progressistas. O Estado de direito, cada vez mais descafeinado, vai perdendo a sua legitimidade coletiva, conquistada a duras penas. Objeto de interpretação de agentes à direita e à esquerda, no centro de uma “disputa por posições”, mascarada por um pressuposto carisma e construída por especialistas do mercado, esta democracia limitada, manufatura e gera refluxo e rejeição. Alguns destes são portadores de violência, no Brasil, na Colômbia, no México. Outros apostam na abertura de uma saída de emergência constitucional, no Chile e no Peru.

Texto publicado originalmente em francês, em 17 de Junho de 2021, na seção ‘Actualités – Amérique Latine’, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “L’Amérique latine, en révisionnisme démocratique. Du Chili au Venezuela en passant par le Pérou”. Tradução de Thiago Augusto Carlos Pereira e Simone Varella. Revisão de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.

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Notas

[1] Em El Mercurio, 29 de abril de 2021.

[2] Em Democracia abierta, 9 de junho de 2021.