É mais um, das dezenas de novos adjetivos que passaram a enfeitar a palavra jornalismo desde o início da era digital. E como se trata de um termo novo é preciso dar um exemplo concreto do que estamos falando. Para isto é preciso mostrar a diferença entre os prefixos multi, inter e trans, que hoje são usados em dezenas de casos, como a diferenciação entre multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar.
Recorrendo à metáfora do campo de futebol: se em cada canto do gramado há um grupo isolado de pessoas, isto configuraria um campo multicultural; uma situação interdisciplinar surgiria se cada grupo passar a observar e imitar os demais; e se os grupos decidissem formar equipes misturando componentes, teríamos o que seria classificado como um resultado transdisciplinar.
Numa redação jornalística tradicional, ocorre o seguinte: cada editoria trabalha por conta própria sem levar em consideração as demais, mas se algumas delas decidirem trocar informações sobre uma mesma reportagem, teremos uma cooperação interdisciplinar. O estágio mais avançado de colaboração, a transdisciplinaridade, é alcançada quando as editorias, além de trocar, recombinam dados, fatos e eventos para produzir um texto que nenhuma delas poderia ter feito isoladamente.
A grande vantagem de uma preocupação transdisciplinar na hora de preparar um texto, reportagem ou comentário está nesta recombinação, ou seja, na remixagem dos dados obtidos por diferentes áreas de pesquisa para transformá-los num produto informativo de qualidade muito superior. O problema é que a dinâmica industrial na atividade jornalística impõe um ritmo acelerado de produção que, na maioria dos casos, permite chegar até a colaboração interdisciplinar, no máximo.
As consequências desta limitação aparecem quando o jornalista acaba tendo que se submeter a rotinas editoriais inadequadas para a cobertura de casos complexos como a violência contra mulheres, racismo, discriminação de refugiados e migrantes, bem como a xenofobia ideológica. São situações em que o repórter ou editor precisa diversificar suas fontes de informação para evitar narrativas que possam induzir o leitor, ouvinte ou telespectador a escolhas simplistas como bom ou mau, justo ou injusto, certo ou errado.
O pesquisador norte-americano Cass Sunstein [1] já mostrou que opções simplistas geram bolhas informativas compostas por pessoas que pensam igual e que tendem a se tornar cada vez mais sectárias na defesa de seus pontos de vista, justo porque não levam em consideração ideias divergentes. O sectarismo gera a polarização e radicalização político-ideológica.
DNA profissional
Todos nós jornalistas incorporamos em nosso DNA profissional, em grau variável, uma herança cultural de nossa família, do lugar onde crescemos, da nossa educação e das experiências vividas e da empresa onde trabalhamos. Estes resíduos hereditários, alguns deles inconscientes, condicionam a forma pela qual produzimos notícias, reportagens e entrevistas. Todos nós estamos sujeitos a este tipo de condicionamento que pode acabar interferindo no produto final.
A preocupação com a abordagem transcultural no trabalho jornalístico exige um senso autocrítico permanente, especialmente dos profissionais envolvidos em situações muito influenciadas por fatores culturais como protestos étnicos, manifestações raciais e de gênero, guerras entre nações ou conflitos guerrilheiros. Somos sempre condicionados a ter mais ou menos simpatias por algum grupo quando cobrimos um confronto entre pessoas, porque sabemos que a objetividade e imparcialidade absolutas não existem. Nosso esforço é reduzi-las o mais possível.
Editorias como internacional, polícia e as que lidam com problemas étnicos e de gênero são muito mais expostas a abordagens equivocadas quando fatores culturais e psicológicos não são devidamente levados em conta. Os correspondentes internacionais são particularmente suscetíveis a este tipo de influência porque chegam a um país estrangeiro trazendo a bagagem cultural do seu país de origem; estão condicionados pela agenda noticiosa das agências de notícias e grandes jornais internacionais que inevitavelmente têm suas preferências abertas ou disfarçadas; e se defrontam com uma realidade desconhecida e muitas vezes complexa.
Tudo isto somado à urgência em mandar informações para sua redação acabam gerando reportagens enviesadas e que reforçam as distorções informativas trazidas na bagagem do repórter, fotógrafo ou cinegrafista. Durante coberturas na África vi várias vezes repórteres europeus muito mais interessados em era saber “qual a tribo boa e qual a ruim” do que em entender a situação. Aqui na América Latina, a maioria das reportagens europeias e norte-americanas tem como principal referência os ditadores, políticos corruptos ou narcotraficantes, deixando em segundo plano a crise social.
O uso da expressão transcultural até agora foi exclusivo das pesquisas acadêmicas, mas a complexidade crescente no fluxo atual de notícias, especialmente na internet, coloca o jornalismo contemporâneo diante de um novo desafio. Se a profissão quer continuar a ocupar uma função relevante na sociedade, os repórteres, editores e analistas devem adotar a preocupação transcultural como prioridade.
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Carlos Castilho é Jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.
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Nota
[1] Ver livro Going to Extremes (Indo a Extremos) 2009, Oxford University Press, sem tradução ao português.