TECNOLOGIA
O Brasil na rota do Kindle
‘Antes que nos lancemos às especulações sobre o futuro do livro digital é preciso fazer um exercício que se tornou clássico. Esse exercício analisa o livro comum impresso em papel do ponto de vista do mais exigente usuário do universo. Ele diria que se trata de um produto que funciona sem bateria, dispensa o manual do usuário, suporta quedas, é barato e pode ser substituído a um custo mínimo. É, portanto, uma invenção tecnologicamente perfeita. Não por acaso, atravessou mais de quinhentos anos de história como o mais simples e prático instrumento para o registro e a transmissão de ideias. Mas, mesmo com todas essas imbatíveis características, o livro evolui. A cara mais conhecida dessa evolução, que começa a ser vendida aos brasileiros na próxima semana, é o Kindle, da Amazon, um leitor digital de textos que já vendeu mais de 1 milhão de unidades nos Estados Unidos. O Kindle, cujo nome deriva dos verbos acender e iluminar em inglês, passará a ser vendido em 99 países, além do Brasil. Tecnicamente é um ‘e-reader’, ou leitor eletrônico. Seu fabricante, a Amazon, é um gigante do comércio varejista na web. Ela é maior do que seus três principais concorrentes somados. A versão que chega ao Brasil custará 279 dólares e só poderá ser comprada no site da Amazon. Acrescidos os impostos de importação e frete, chega-se a uma conta final equivalente em moeda brasileira a 585 dólares – 1 016 reais na sexta-feira passada. ‘Estamos animadíssimos. Não sabemos quanto nossas vendas aumentarão, mas nosso alvo imediato são os 90 milhões de consumidores da amazon.com que já temos espalhados pelo mundo. Esse é um número considerável’, disse a VEJA Jeff Bezos, o presidente e fundador da superloja virtual.
De posse do Kindle, o usuário brasileiro terá acesso sem fio ao estoque de mais de 200.000 livros digitalizados à venda no site da Amazon. O aparelho se conecta automaticamente a uma rede de telefonia celular 3G, a mais rápida. Na ausência do sinal mais veloz, o Kindle se conecta pela segunda melhor opção, o Edge. A ligação não é gratuita, mas seu custo está embutido no preço do livro, que deverá ser pago com um cartão de crédito internacional na transação eletrônica aferida pelo próprio site da Amazon. O limite de tempo gasto para baixar o livro no Kindle é de sessenta segundos. A estante digital da Amazon já oferece também revistas e jornais. Adicionalmente, o usuário pode transferir para seu aparelho conectado a um computador quaisquer arquivos gravados em PDF – a sigla de Portable Document File –, um formato-padrão pré-instalado na imensa maioria dos PCs. Para carregar arquivos de outros formatos, a Amazon oferece ao usuário um serviço em que ele envia por e-mail para a empresa um documento qualquer e ela o devolve com a formatação correta, para ser lido pelo Kindle. Para receber o arquivo por e-mail e fazer a transferência para o leitor, o serviço é gratuito. Quem desejar receber o arquivo pela rede 3G ou pelo Edge diretamente no e-reader pagará uma taxa de pouco mais de 1 dólar.
A oferta de e-books, como são chamados em inglês os livros digitais oferecidos via internet, cresce exponencialmente, o que é uma comodidade para o usuário, mas uma grande preocupação para os editores brasileiros de livros de papel (veja quadro). A Amazon lidera esse mercado, que avança rapidamente. Em setembro passado, O Símbolo Perdido, o novo título de Dan Brown, autor do best-seller O Código Da Vinci, foi lançado em formato digital e no tradicional impresso. O digital vendeu mais do que o livro de papel. No início do ano, as versões eletrônicas de livros representavam 13% dos títulos comercializados pela Amazon. Em maio, esse número chegou a 35% e, agora, passa dos 48%. Dados da Associação Americana de Editores (AAP) corroboram o avanço. Indicam que as vendas de e-books somaram 20 milhões de dólares em 2003, ante 113 milhões de dólares em 2008. O aumento nesse período foi de 465%. Só no primeiro semestre de 2009, o crescimento foi de 150%. ‘Hoje, os e-books representam apenas 1% do mercado, mas não tenho dúvida de que esse ritmo de crescimento vai incentivar todo o setor a mergulhar nessa tecnologia’, disse a VEJA Edward McCoyd, diretor da AAP, em Nova York.
Entusiasmo semelhante percebe-se na produção de e-readers. Eles se multiplicam – e se diversificam. A Amazon tem o Kindle internacional, com tela de 15,2 centímetros, e o DX, vendido nos Estados Unidos, com monitor de 24,6 centímetros. O trunfo de ambos é a conexão wireless por rede 3G com a imensa biblioteca virtual da empresa (nos Estados Unidos, são 350 000 títulos). A companhia não divulga números de vendas de seus produtos, mas uma estimativa do analista Mark Mahaney, do Citigroup, mostra que foram comercializados 500 000 Kindles em 2008. Neste ano, mesmo sem o avanço internacional, devem dobrar. Em agosto, a Sony anunciou o lançamento de três modelos numa só tacada. Dois deles têm tela sensível ao toque (touch screen). A japonesa Fujitsu vende no Japão um e-reader com tela colorida. Os problemas são o preço (mais de 1 000 dólares) e o reflexo que incide sobre o monitor. Marcas como Samsung, Asus (que criou o primeiro netbook comercial), Plastic Logic, iREX e até mesmo genéricos chineses também estão entrando nesse ramo. Em 2009, devem ser vendidos 3 milhões de e-readers. Em 2014, tal cota pode atingir a casa dos 30 milhões.
Há forte expectativa de que a Apple também lance um produto para a leitura de livros, mas parecido com um tablet (computador com tela touch screen). Steve Jobs tem desmentido com veemência tal possibilidade – o que, na prática, não significa muito. Recentemente, os rumores sobre o novo produto da empresa recrudesceram depois que a companhia registrou a patente número 20080204426, nos Estados Unidos, de um sistema que ‘simula uma página sendo virada em uma tela a partir do movimento de um dedo’, como num livro de átomos. O Google é outro gigante firme nesse páreo. Ele não tem um produto, mas 1,5 milhão de livros digitalizados. Detalhe: quer chegar a 5 milhões em meados de 2010.
O problema dessa leva de concorrentes é a própria Amazon. Um dos poucos sobreviventes da bolha da internet, que explodiu em 2000, a Amazon tem um chefe, Bezos, obstinado e duríssimo na queda. Hoje, posicionou-se no mercado editorial de maneira impressionante – e abrangente. Tem dois serviços, o BookSurge e o CreateSpace, que permitem a impressão de títulos sob demanda e auxiliam autores, cineastas e músicos a produzir, divulgar e distribuir suas obras. Somente em 2008, a Amazon comprou a Audible.com, uma empresa de audiolivros, a AbeBooks, uma espécie de sebo on-line, e a Shelfari, uma rede social de leitores assíduos. Em abril, adquiriu a Lexcycle, que criou o Stanza, um aplicativo para a leitura de livros no iPhone. Tem ainda um programa chamado AmazonEncore. Com base nas vendas do site da companhia, ele identifica livros com bom potencial de vendas e os imprime numa nova edição. É uma espécie de caça-talentos cuja peneira é feita eletronicamente. O Encore, no limite, representa uma nova forma de intermediação entre o público e a obra, com base em informações fornecidas diretamente pela audiência.
A força da Amazon permite também que a companhia invista a longo prazo. Criada em 1995, a empresa só saiu do vermelho em 2003. Jeffrey Lindsay, analista da Sanford C. Bernstein, acredita que a companhia com sede em Seattle está subsidiando a venda de livros digitais. Ele calcula que, para conseguir o mesmo valor recebido com a comercialização de um livro convencional, tem de vender três e-books. A questão é saber quem entre os concorrentes pode suster tal estratégia por muito tempo. Nos Estados Unidos, os títulos em formato de bits custam no máximo 9,99 dólares, mesmo os best-sellers (o preço do produto no papel é de 30 dólares. No Brasil, o download das versões digitais sairá por 11,99 dólares. Outra vantagem competitiva monumental da Amazon está na logística. Ela conta com 25 centros de distribuição de produtos nos Estados Unidos, Reino Unido, China, Japão, França e Irlanda. Somada, a área desses depósitos equivale a seis estádios do Maracanã. O movimento dos produtos, assim como máquinas e empilhadeiras, é orquestrado eletronicamente.
Mas, por mais inovador que o mundo dos novos leitores eletrônicos pareça, ele ainda engatinha. Os e-readers têm potencial para suceder aos livros convencionais com impacto semelhante ao da substituição das máquinas de escrever pelos computadores pessoais. Uma vez em formato digital, não haverá limite para a narrativa de histórias. A dinâmica dos e-books não precisa estar amarrada à linearidade e no futuro pode incorporar fotos e vídeos. Hoje, contudo, as telas mais eficientes dos e-readers reproduzem somente tons de cinza (veja quadro). Na prática, os atuais aparelhos estão em estágio de desenvolvimento equivalente ao dos celulares dos anos 80 – aqueles tijolões com quase 1 quilo. Ainda assim, o momento é propício para avanços nesse campo. O relatório Reading on the rise (A Leitura em Alta), da National Endowment of Arts, dos Estados Unidos, mostrou que, pela primeira vez em 25 anos, houve aumento do número de pessoas que leem livros. Essa parece ser uma tendência global. No Brasil, a venda de títulos aumentou 5% entre 2007 e 2008. Mas será que os e-readers vão banir os livros de papel? ‘A história mostra que um meio nunca acaba com outro em curto prazo. Os manuscritos prosperaram depois do surgimento da prensa de Gutenberg. O rádio se reinventou depois da televisão’, disse a VEJA Robert Darnton, diretor da Biblioteca da Universidade Harvard e autor do recém-lançado The Case of Books. É possível que, agora, os livros digitais agucem a curiosidade de pessoas antes refratárias à leitura e contribuam para o aumento nas vendas daquele produto tecnologicamente imbatível, sem bateria, barato e que suporta quedas… o livro em papel.
Leitura quase perfeita
O primeiro grande salto de qualidade dos livros digitais foi dado no início da década, quando o monitor desses aparelhos passou a empregar uma espécie de tinta eletrônica criada pela empresa E Ink – uma companhia que nasceu nos laboratórios do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Esses painéis se transformaram em um padrão para os e-readers. Equipam quase todos os aparelhos do mercado. Até o surgimento dessa tecnologia, os leitores eletrônicos usavam tela de cristal líquido (LCD), como a das TVs. Mas a imagem do LCD é um problema para esse tipo de dispositivo. Ela é formada por uma luz branca permanentemente acesa no fundo da tela – a backlight. Esse tipo de recurso prejudica o contraste (a diferença entre o preto e o branco). Tal deficiência é fatal para um equipamento que tenta imitar um livro. Para completar, o LCD brilha em ambientes muito iluminados, tornando inviável a leitura. A tinta eletrônica faz o contrário: torna-se mais nítida quando submetida a intensa luminosidade. A primeira versão do display da E Ink, adquirida em junho por 215 milhões de dólares pela taiwanesa Prime View, foi apresentada em 2000. Dois anos depois, a companhia introduziu um novo modelo com 0,3 milímetro de espessura. Em 2004, o dispositivo era empregado no primeiro e-reader da Sony, chamado Librié. Outra vantagem dos monitores da E Ink é que são flexíveis. Essa peculiaridade fez com que a Telecom Italia criasse em parceria com a Polymer Vision o protótipo de um celular com tela dobrável, focado na leitura de textos. Agora, o desafio da empresa com sede em Cambridge, nos Estados Unidos, é levar a cor aos displays. Isso só deve ocorrer em dois anos.
O garimpo eletrônico
Sebos são lojas abarrotadas de livros usados, em geral dispersos por prateleiras empoeiradas. Esse ambiente faz a alegria de quem gosta (e pode) passar horas a fio garimpando títulos difíceis de encontrar em livrarias tradicionais. A internet projetou esse universo para uma escala de negócios que em nada lembra as lojinhas charmosas e com cheiro de mofo. A mais bem-sucedida iniciativa nessa área no Brasil é a Estante Virtual, portal que disponibilizou o acervo de mais de 1 600 sebos, livrarias e livreiros autônomos no país. Criado há quatro anos, o site oferece mais de 5 milhões de títulos e uma ferramenta de busca simples e eficiente – por assunto, autor, título, cidade e também pelo nome do sebo. O sucesso de público permitiu que a Estante Virtual tivesse também 500 000 leitores cadastrados, que podem vender ou trocar seus livros ali. ‘Consegui achar um nicho que possibilitou disseminar o acervo dos sebos Brasil afora, para muito além do que eles jamais imaginavam que poderiam alcançar’, diz André Garcia, de 31 anos, criador do serviço, que começou num quartinho e hoje tem um escritório com quatro salas e sete funcionários.
Pelo portal, são vendidos em média 5 000 livros por dia, 43% mais do que os 3 500 exemplares que a Livraria da Travessa, a mais prestigiada do mercado carioca, comercializa diariamente em suas sete lojas e em seu serviço on-line. As vendas pela Estante Virtual somam 3 milhões de reais por mês. Os sebos repassam 5% para a empresa de Garcia, que cobra ainda uma mensalidade para catálogos acima de 2 000 volumes. A iniciativa surgiu quando ele decidiu abandonar a carreira de consultor de marketing para fazer um mestrado em psicologia social. Com dificuldade para encontrar livros dessa área, passou a percorrer sebos. Mudou de ramo, mas continua bom de marketing. Na última edição da Bienal do Livro, no mês passado, Garcia pagou 100 000 reais para montar um estande. Não vendeu nenhum exemplar. Seu intuito era divulgar o portal e promover a troca de livros usados. Foi um sucesso. Em apenas onze dias, mais de 33 000 livros foram trocados.
À espera da conta
Nesta semana, editores de todo o mundo vão se encontrar na tradicional Feira do Livro de Frankfurt, o maior encontro mundial do setor. Qual será um dos principais temas em debate? Como se preparar para a chegada do Kindle em 100 países. ‘Ainda não sei em que termos vamos negociar, mas tenho de reconhecer que um acordo com a Amazon parece inevitável. O livro digital é irreversível’, diz Sérgio Machado, presidente do Grupo Record, o maior conglomerado editorial no país de obras não didáticas, com 6 500 títulos em catálogo. Na semana passada, Machado recebeu uma ligação que o deixou intrigado: uma representante da loja virtual o convidava para um encontro, na Alemanha. ‘Dependendo da proposta, poderá ser interessante. Com as versões digitais, eu cortaria despesas com papel e logística’, diz. Em geral, do preço de um livro, 15% cobre custos de impressão e papel, e 20%, da distribuição.
Em todo o mundo, a futura partilha da receita dos e-books traz dúvidas, apesar da considerável adesão das empresas no mercado americano. A preocupação dos editores concentra-se nos best-sellers. Eles são responsáveis pela maior parte do faturamento das companhias. No Kindle, são vendidos por 9,99 dólares (11,99 no Brasil), valor distante do cobrado nas livrarias, cuja soma pode chegar a um número quatro vezes superior. ‘Ainda existem muitas dúvidas, mas acredito que, no fim de tudo, o Kindle será apenas mais um meio de leitura’, diz Paulo Rocco, da Editora Rocco. Pedro Herz, dono da rede de nove lojas da Livraria Cultura, também diz não estar preocupado com o avanço global da Amazon. ‘Numa pesquisa informal, nossos clientes disseram que não trocariam o cheiro dos livros de papel por um leitor eletrônico. Só não sei como vão se comportar no futuro os bebês que estão saindo da maternidade’, afirma. Esses, provavelmente, vão adorar o odor dos e-readers.’
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