Num dos episódios de Dom Quixote, Miguel de Cervantes nos coloca ante um diálogo aparentemente insólito. Mais especificamente no Capítulo VII, nosso herói quixotesco aponta uma possibilidade ao seu “escudeiro”: “Vê ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos a vida, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.” Cético, Sancho Pança questiona: “Quais gigantes?” E recebe como resposta: “Aqueles que ali vês, de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.” Sancho então sugere: “Olhe bem Vossa Mercê, que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.” O episódio continua e Quixote segue em seu cavalo Rocinante para enfrentar os “gigantes”, desconsiderando a sugestão do escudeiro. Para além das análises e interpretações possíveis dessa que é uma das principais obras literárias de nossa cultura, o episódio faz pensar sobre o modo como Sancho Pança busca trazer o Quixote para a realidade: trata-se de uma confusão de moinhos com gigantes, de braços com pás.
A pesquisadora e política espanhola Irene Lozano retoma o episódio no livro Son molinos, no gigantes: Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia (2020) para tratar de alguns dos principais desafios sociais e políticos do nosso tempo: a difícil relação entre informação, tecnologia e política, principalmente em relação aos efeitos da desinformação para as sociedades contemporâneas. Lozano aponta Sancho Pança como um “vigilante epistêmico”, isto é, alguém que coloca em marcha mecanismos argumentativos e o diálogo que facilita a racionalidade para escapar de uma narrativa e interpretação que parece desconsiderar os fatos e a realidade. Nesse caso, o escudeiro do Quixote representa uma atitude fundamental para os tempos atuais, quando as possibilidades tecnológicas possibilitam a grande disseminação de desinformação, através de notícias e informações falsas, descontextualizações, questionamentos vazios, entre outras ações. O vigilante epistêmico ocupa um lugar importante nessa situação, pois coloca em ação o conjunto de mecanismos cognitivos que nos permitem avaliar e calibrar a confiança nas informações que recebemos de nossos semelhantes. Esse processo ocorre através de questionamentos e exigências de justificação, atitudes fundamentais para o um tempo em que pós-verdade, fake news e falsos debates passaram a pautar os debates públicos e as decisões políticas.
Lozano, que foi deputada e atualmente ocupa a presidência do Conselho Superior de Esportes de seu país, desenvolve em Son molinos, no gigantes um reflexivo e informado ensaio sobre o impacto da desinformação e das interações sociais digitais para a convivência democrática e política. De maneira geral, o livro detalha as ameaças que o debate público sofre nas democracias contemporâneas, juntamente com os acontecimentos políticos e as revoluções tecnológicas que impactam decisivamente a deliberação pública. Primeiramente, destaca os modos pelos quais as novas tecnologias de interação social digital contribuem para a tribalização e a polarização política nas sociedades, amplificando as tensões e separações consequentes das crises sociais e econômicas de nosso tempo, como o aumento das desigualdades e os desafios de atribuição e consideração de cidadania de muitas pessoas. Tais contextos contribuem para que muitos se aproximem de discursos que ofereçam soluções simples e enganosas para os difíceis problemas contemporâneos.
A autora destaca também como os modos como pensamos e raciocinamos não nos torna imunes à desinformação. Na verdade, diferente dos modelos tradicionais que apontam a racionalidade humana como um elemento distintivo e muitas vezes infalível da nossa condição e natureza, Lozano mostra que nossas capacidades cognitivas são limitadas e possuem tendências e vieses que podem nos levar a crenças infundadas e questionáveis. Algumas das principais pesquisas contemporâneas das áreas de psicologia, filosofia e neurociências, entre outras, questionam a concepção comum acerca da racionalidade humana: não temos um “acesso privilegiado à verdade”, e podemos facilmente aceitar e crer que “moinhos de vento” são “gigantes”, pautando nossas decisões e escolhas com base em falsidades e incompreensões. As variadas formas de negacionismo, os debates pautados em desinformação e a aceitação e o compartilhamento de informações falsas mesmo por pessoas com altos níveis de escolaridade são exemplos desses limites, que muitas vezes são manipulados por atores políticos com o objetivo de conquistar e ampliar poder fazendo uso de estratégias que desinformam, promovem e estimulam emoções e reações negativas, tumultuando assim os debates públicos.
Segundo Lozano, a revolução nas tecnologias de informação e comunicação introduziram novas formas de interação social e de transmissão de informação, que geraram mudanças consideráveis nas nossas sociedades. Os modos como as plataformas das redes sociais são desenhados, pautadas pelo objetivo de nos engajar e estimular continuamente nossa atenção, juntamente com o modelo de funcionamento estruturado em algoritmos que buscam capturar nossos dados e “oferecer mais do mesmo” para ampliar o tempo de conexão, são elementos fundamentais dessas mudanças. No entanto, a mais intensa dessas mudanças envolve uma “crise nos modelos de vigilância do conhecimento”, pois tudo pode ser dito a todo momento por todos, e alguns discursos e crenças podem encontrar grupos que os aceitem e os tornem imunes à crítica e a reflexão. Aqui, a ascensão contemporânea de visões extremistas e violentas, pautadas muitas vezes em discursos vazios e sem fundamentos, são exemplos desse processo. O problema maior é que tais concepções passam a pautar os debates públicos e resultam em consequências sérias para a política e para a vida democrática das sociedades.
Lozano traz relativamente poucas respostas aos desafios informacionais e seus impactos sociais e políticos da atualidade. Defende a valorização da atividade jornalística e das autoridades do conhecimento, juntamente com a necessidade constante de manutenção da conversação pública séria e pautada em dados e informações seguras, além da reflexão sobre a regulação das plataformas. Um dos seus diagnósticos finais aponta que “A máquina da desinformação não apenas não é perfeita, mas se revela muito vulnerável à força da realidade.” Como vimos no caso da pandemia, os discursos negacionistas e pautados pela desinformação foram realmente vencidos pela trágica realidade que se impôs, infelizmente ao custo da vida de muitos. Porém, a manutenção de uma ampla rede de apoio à certos discursos e visões pautadas por informações falsas mostra que o desafio se mantém. Uma crítica é que Lozano não aprofunda acerca dos contextos de incerteza e dificuldades sociais e econômicas de nosso tempo, onde as desigualdades se ampliam cada vez mais e muitos de nós encontram cada vez mais dificuldades para a manutenção da vida. O ensaísta indiano Pankaj Mishra identifica nosso tempo como uma “Era de Raiva”, na qual poucos têm acesso aos benefícios da globalização e muitos ficam para trás, um contexto que contribui para a disseminação e a aceitação de narrativas e visões questionáveis e deturpadas, que exploram nossas fragilidades cognitivas e sociais.
Mesmo com tais observações, Son molinos, no gigantes: Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia é um livro importante para compreensão do nosso tempo, nossos desafios e de nós mesmos. Compreender as mudanças nas formas de comunicação e nossos limites cognitivos e considerar que nenhum de nós está imune às possibilidades da desinformação estimula um cuidado com nossas interações sociais digitais, com nossa atenção e com a vigilância epistêmica necessária para a estruturação de visões de mundo estruturadas e coerentes. Nem todos nós temos Sancho Pança para nos questionar e exigir fundamentos e justificativas. Dessa forma, dependemos de nossa limitada racionalidade para escapar das perigosas armadilhas que são utilizadas para nos fazer confundir “moinhos de vento” com “gigantes” e que tantos impactos podem trazer para as nossas já frágeis democracias.
***
José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais do IFMG Campus Ponte Nova. Realiza estágio pós-doutoral no Labô da PUC-SP e é pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa sobre Simbioses Humano-Tecnologias do IEA-USP.
___
Referências
CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. Tradução de Ernani Ssó. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2012.
LOZANO, Irene. Son molinos, no gigantes: Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia. Madrid: Ediciones Peninsula, 2020.
MISHRA, Pankaj. The Age of Anger: A History of the Present. Nova York: Farrar, Straus, and Giroux, 2017.