Dentre as disciplinas que compõem as ciências humanas, os métodos e os conhecimentos desenvolvidos no campo antropológico são os que mais se aproximam da prática jornalística. A antropologia lida com sistemas de análises dinâmicos e, em muitos casos, imprevisíveis. A ideia mais importante que se revela em ambas as atividades diz respeito ao referencial: aquilo que acontece em algum lugar, não importa em qual espaço (geográfico ou virtual), constitui a matéria-prima dessas duas áreas — que ganham força durante o nascimento das ciências sociais no século 19.
São os contextos sociais, em sentido amplo, materializados nos acontecimentos, que compõem a essência da atividade jornalística. Tanto o jornalismo quanto a antropologia partem do empirismo para construírem formas particulares de produção de conhecimento.
Há diferenças cruciais entre elas. O jornalismo tende a personificar e individualizar ao reportar os fatos. O insólito tem mais peso para virar notícia. Já a antropologia tem um olhar voltado para os arranjos sociais, para o coletivo e busca uma certa regularidade ao observar os fenômenos. Quero ressaltar, contudo, as confluências entre ambas as práticas.
A ideia de que o jornalismo se define apenas por uma técnica é noção simplista que cria a ilusão de que basta ter desenvoltura com a escrita para se tornar um bom jornalista. Formar profissionais nesse paradigma é repetir a fórmula que vigorou até meados do século 20, no Brasil, época em que as redações estavam repletas de escritores-jornalistas e não de jornalistas-escritores. Não à toa, a crônica é um gênero cuja origem remonta aos espaços dos jornais.
A reportagem envolve uma complexidade para sua produção: exige deslocamentos e imersão, um ‘estar lá’ e um esforço de compreensão que vai além da escrita “impressionista”. Uma reportagem pode ser engenhosa no estilo, com linguagem próxima às experiências literárias, e igualmente deficiente no esforço de captar e compreender fenômenos, situações e contextos sociais. Um bom texto jornalístico fisga a atenção do leitor pela forma como a linguagem foi construída; porém, não raro, uma reportagem pautada apenas nas experiências de linguagem pode camuflar deficiências e fraturas epistemológicas que pouco acrescentam ao entendimento dos temas abordados. No trabalho jornalístico, portanto, as nuances e sutilezas de cada abordagem afloram a partir do envolvimento do repórter com a cena vivida e observada. Um escritor lida com a verossimilhança, enquanto um jornalista tem como parâmetro a veracidade.
O que quero salientar é que escrever bem no jornalismo — com clareza, concisão e objetividade — é fundamental para o exercício da profissão, mas não é suficiente. A reportagem ainda tem muito a avançar como prática de produção de sentidos contemporâneos, mas a atividade jornalística também não pode se limitar a ser uma prestadora de serviços, fazer checagem de dados ou comprovar “a veracidade” de informações que circulam hoje em grande escala, em múltiplas plataformas.
Aliada à concepção de que o jornalismo atende ao interesse público, uma das funções do jornalista é ser um mediador social, um articulador dos discursos especializados. Mas, para além dessa função nobre, a atividade pode avançar na tarefa de reportar a realidade social. Nesse sentido, a prática antropológica oferece caminhos metodológicos que permitem ao jornalismo compreender melhor os fenômenos sociais.
Ciência da alteridade
Nesses tempos em que o mundo conclama respeito à diversidade, a antropologia — esta ciência da alteridade — é uma área de conhecimento que recebe pouca atenção na formação profissional jornalística. Por exemplo: no debate midiático sobre a crise sanitária, durante a pandemia de Covid-19, somente epidemiologistas são requisitados para falar; havendo uma ausência notável de sociólogos, antropólogos e de cientistas sociais para avaliar os impactos da Covid-19.
Quando as empresas de comunicação enfrentam crises (e elas são cíclicas), vem à tona a discussão sobre financiamento e sobrevivência de veículos, e a solução pensada para elas segue a mesma receita das companhias tradicionais, a saber: cortar custos. Jornalismo é, contudo, uma necessidade social e a atividade possui outras demandas para além da equalização de receitas.
A ênfase nos cursos de jornalismo está na instrumentalização de técnicas de produção de notícias e reportagens. A técnica sozinha não resolve essa demanda, como bem sinalizou o jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, Eugênio Bucci: ao lado da técnica, “o pensamento precisa elaborar o critério de cobertura. É nessa medida que a crise das redações, hoje, mais do que crise econômica ou tecnológica, é uma crise de pensamento. Para cobrir bem é preciso pensar bem — com independência” (Imprensa, objetividade e militância, O Estado de S. Paulo, A2, 14/10/2019).
Os jornalistas podem se beneficiar dos métodos e abordagens antropológicas em vários tipos de coberturas, mas principalmente na produção de reportagens. Mas o que caracteriza uma reportagem? Uma síntese foi esboçada por Cremilda Medina, no livro A arte de tecer o presente (1973, ed. Média), produzido em parceria com Paulo Roberto Leandro.
O livro de Cremilda Medina elenca quatro noções sobre as características de tipo de texto jornalístico. No conjunto, a reportagem pode revelar (1) o contexto social, que situa a problemática do assunto no tempo e espaço social, (2) a captação de vozes especializadas, com diagnósticos e prognósticos de pesquisadores, (3) a busca das raízes histórico-culturais dos fenômenos analisados, e, por fim, (4) as nuances que emergem do protagonismo anônimo.
Insiro a prática da observação-experiência etnográfica como uma quinta categoria que poderia enriquecer a atividade jornalística. Os métodos de observação constituem a essência do trabalho antropológico e compõem parte fundamental do reportar do jornalista. Explorar as possibilidades de captação de informações para além do registro do falar forneceria novas interpretações dos acontecimentos e contribuiria para o que chamo de construção social dos sentidos.
A prática jornalística contemporânea se restringe, na maioria das abordagens, à coleta de informações estatísticas e à seleção de vozes especializadas que comentarão dados, fatos, pesquisas. A mediação do contexto social se dá numa perspectiva de análise quantificável, portanto, na qual os enfoques culturais são tratados como aspectos subjetivos e não científicos.
A relação com as fontes
Um dos primeiros aspectos a se considerar nessa aproximação de áreas de conhecimento é o jornalismo poder se valer da interpretação cultural, que é o princípio central e unificador de todo trabalho etnográfico. Esta abordagem mais ampla e cultural fomentada pela antropologia estimularia a apreciação de novos padrões e conexões interpretativos, ajudando a mudar a abordagem fragmentária e parcial do jornalismo. Encontro essa concepção tratada pela antropóloga Elizabeth Bird, do departamento de Antropologia da Universidade de South Florida (EUA).
O ponto destacado por Bird foca na relação que o jornalista estabelece com as fontes, tratadas em grande parte nas abordagens como objetos quantificáveis, e não como sujeitos. Para o jornalista, a “fonte” é separada da personalidade do indivíduo e vista, muitas vezes, como um “representante”, isto é, uma unidade que fala por outras unidades semelhantes, e não como um indivíduo.
Frequentemente, os jornalistas veem o ato de entrevistar como um processo que tem pouca relação com outras entrevistas com tema em comum e observações relacionadas ao mesmo assunto. Propõe Bird que esses contatos podem seguir estratégias múltiplas, podendo ser incorporados em períodos variáveis de observação e de familiarização com a cena social. Além disso, as perguntas a serem feitas em entrevistas devem emergir tanto das impressões colhidas a partir daquela entrevista quanto de hipóteses científicas, a partir de fontes especializadas que estudaram determinado assunto.
As entrevistas, em um momento posterior, podem ser investigadas mais profundamente, devendo estar no contexto de cooperação mútua, em vez de seguirem informações unidirecionais. Com isso, a entrevista seria enriquecida por observações complementares que são componentes necessários ao trabalho antropológico. Esse processo de relações estabelecido pelo antropólogo com seus interlocutores contribuiria, concordamos com Bird, para a elaboração de uma rede de significados.
Etnografia não é detalhismo
A relação com as fontes jornalísticas envolve estratégias de aproximação e afastamento, algo pouco salientado nos cursos de jornalismo. Ir ao encontro do outro envolve planejamento pré-campo, que no caso do jornalismo seria a pauta. Esse planejamento nunca é um modelo fixo a depender das circunstâncias: por exemplo, a pandemia de Covid-19 reconfigurou abruptamente os paradigmas de cobertura. As ferramentas dos antropólogos são os diários de anotações, relatos ao final do dia, relatórios (que são mais analíticos) compostos por fotos, áudios, desenhos, mapas; sobretudo, a observação como exercício constante da prática etnográfica: saber mais ouvir e olhar que interrogar, segundo um script preestabelecido.
O papel da antropologia não é apenas o de fornecer dados sobre outras culturas. Como comenta Tim Ingold, no campo, diferentemente do laboratório, “é preciso esperar que as coisas aconteçam e aceitar o que é oferecido quando lhe é oferecido”. O resultado final de todo esse processo é o que podemos chamar de etnografia.
O grande equívoco é achar que etnografia é excesso de detalhes, isto é, descritivismo. Etnografia consiste em estabelecer eixos de observação: não é a obsessão pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a atenção que se lhes dá. Em algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento, como bem sintetizou o professor do departamento de Antropologia da USP, José Magnani, fundador e coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da USP.
O método etnográfico, segundo Magnani, não se confunde nem se reduz a uma técnica, podendo usar ou servir-se de várias técnicas, conforme as circunstâncias de cada pesquisa: é antes um modo de acercamento e apreensão que um conjunto de procedimentos prefixados.
É simplista o argumento do tempo de execução para o trabalho de observação em comparação ao trabalho do antropólogo. A antropologia desenvolveu métodos de observação (De perto de longe, de perto e de dentro, de passagem) que se adaptam a qualquer circunstância relacionada ao tempo de trabalho em campo.
O jornalismo está preso ao ciclo do tempo cronológico ou cronométrico para produção e edição de seu material. Há uma pluralidade de ‘tempos’ envolvida em qualquer processo da ação humana. Num trabalho de produção simbólica, essa categoria é múltipla: há o tempo histórico, o individual, o psicológico, o intersubjetivo, o da memória, o físico etc.
Assim, o trabalho do jornalista não consiste apenas em anotar, gravar, fotografar e coletar informações, mas em decidir quais são os fatos significativos para articulá-los. De que forma é possível atingir um grau satisfatório de compreensão dos fenômenos sociais no jornalismo? Existem alguns caminhos — e o conhecimento antropológico pode ser um deles.
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Alex Sander Alcântara é jornalista, doutorando na Escola de Comunicações (ECA) e Artes da USP.
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Referências bibliográficas:
BIRD, S. Elizabeth. Anthropological methods relevant for journalists. University of Florida, EUA, Journalism Educator, 1987, p. 301 – 308.
INGOLD, Tim. Antropologia: para que serve?. Petrópolis (RJ), Vozes, 2019.
MAGNANI, José Guilherme C. De Perto e de Dentro: notas para uma etnografia urbana. Rev. bras. Ci. Soc. vol.17 no.49 São Paulo, June 2002.
MEDINA, Cremilda; LEANDRO, Paulo Roberto. A arte de tecer o presente: jornalismo interpretativo. São Paulo: Média, 1973.