Faz pouco mais de uma semana que o mundo assistiu atônito às imagens da multidão de civis afegãos desesperados que se aglomeravam no aeroporto de Cabul, em busca de socorro. A cena de corpos despencando de um avião americano que deixava a cidade é um dos muitos retratos do caos instalado depois da retomada do poder pelo Talibã. Após 20 anos de ocupação militar americana sob a justificativa de combater grupos extremistas, os fatos dos últimos dias demonstram que os reflexos de uma guerra prolongada aliada a uma crise econômica profunda estão longe de ser resolvidos. As ameaças aos direitos de mulheres e meninas afegãs de decidirem sobre suas próprias vidas, de estudar, de trabalhar, de sair às ruas desacompanhadas por homens ou de escolher a maneira como se vestir são reais e já fazem com que muitas se escondam em casa.
A ativista paquistanesa Malala Yousafzai, conhecida internacionalmente por sua defesa em prol da educação de meninas e a mais jovem personalidade a receber o Prêmio Nobel da Paz, expressou sua preocupação com as restrições de liberdade que se prenunciam a mulheres e meninas, em artigo publicado no Brasil pelo Estadão. Em 2007, quando o Talibã também dominou sua cidade natal, no vale do Swat, Malala escondia seus livros sob o xale e seguia para escola com medo. Anos mais tarde, sofreu um atentado a tiros dentro de um ônibus escolar. À época, ela já denunciava, pela internet, o cerceamento de acesso à educação para meninas sob o regime do grupo. No Afeganistão, nem sempre foi assim: na década de 1970, por exemplo, mulheres podiam frequentar escolas e universidades, trabalhar e mesmo caminhar pelas ruas com os rostos à mostra, caso quisessem. E os retrocessos impostos no passado, com razão, são temidos que se repitam agora.
Imagens de meninas retornando à escola na cidade de Herat, feitas por um jornalista da Agência France-Presse, divulgadas poucos dias depois da chegada dos talibãs ao poder, também são vistas com desconfiança e cautela por países do Ocidente. As cenas mostram garotas felizes, vestidas com túnicas pretas e hijabs (véus) brancos lotando as salas de aula, na cidade que é considerada mais cosmopolita do que outras do território afegão.
Até a tomada da capital Cabul, as mulheres representavam 27% do parlamento afegão. Agora, ativistas, políticas, professoras e demais profissionais se refugiam em casa, temendo por suas vidas e de suas famílias. Segundo a Red Internacional de Periodistas con Visión de Género (RIPVG), as mulheres jornalistas afegãs enfrentam um duplo risco: por sua condição de gênero e pelo exercício de seu direito de comunicar e informar. Cabe lembrar que o relatório mundial sobre liberdade de imprensa publicado este ano pela ONG Jornalistas sem Fronteiras destaca o Afeganistão como um dos países mais perigosos para a atividade jornalística.
E, mesmo com as promessas de um modus operandi diferente, com discursos vagos de que os direitos das mulheres serão respeitados de acordo com a lei islâmica, a suspeita de que as garantias sejam apenas uma cortina de fumaça se fortalece. A situação é de um duplo silenciamento: por um lado, mulheres, meninas e minorias étnicas escondidas e amedrontadas; por outro, jornalistas amordaçados ou sem garantias de suas liberdades profissionais. Poderá ser uma tragédia pior do que imaginamos porque ela sequer será relatada. As vítimas sequer serão encontradas. As violências sequer serão registradas. O jornalismo, como prática, tem o compromisso de conectar o mundo ao que ocorre nesse território, como em vários outros. Mas, neste contexto, como o fará?
A saída vergonhosa do governo americano também nos faz refletir sobre o sentido de democracia e cidadania que apregoa. Indo além, a quem contempla. Os afegãos estão em perigo, e as mulheres e meninas afegãs mais ainda. Como buscá-las e assegurar que suas histórias sejam conhecidas se a segurança de profissionais da imprensa também está ameaçada? Serão silêncios sob silêncios. E não há história onde não há possibilidades de que esta seja registrada ou lembrada.
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Viviane Gonçalves Freitas é jornalista e doutora em Ciência Política (UnB). Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, feminismos e raça. Instagram: @vivianegf14
Lucy Oliveira é jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Instagram: @lucy_olivr