Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eles querem você!

A revista Época tem, sem dúvida, o mais bonito projeto gráfico dos semanários brasileiros de grande tiragem. Apresenta belas imagens na capa, tem uma diagramação limpa, fotos em preto e branco e infografias detalhadas com recursos 3D. Todo este apreço pela qualidade gráfica reflete, evidentemente, na credibilidade do conteúdo. O conjunto de elementos bem distribuídos nos faz prender a atenção, incita nossa curiosidade, nos leva a consumir prontamente aquela informação impressa nas páginas da revista. O meio é a mensagem, já disse o professor de Literatura canadense Marshall McLuhan, sempre referência nos cursos de Comunicação Social.

É certo que este belo conceito gráfico adotado reflete no sucesso da revista no mercado – não esquecendo, claro, o poderio comercial da máquina editorial chamada Globo. Época é sustentada por um time de anunciantes de peso, que circula por toda a programação da TV, nas páginas dos jornais e nas demais revistas do grupo empresarial. É para retribuir o investimento deste conjunto de apoiadores que a revista escreve e não para informar seus leitores. A questão é simples: as verbas de publicidade representam o principal ganha-pão dos veículos de comunicação. As receitas de venda em banca ou assinatura são irrisórias.

Isso ajuda a entender o motivo de algumas condutas da revista no trato com seus leitores. Época adota uma postura de induzir o leitor no modo de pensar, agir, vestir e, principalmente, consumir. Vejamos alguns exemplos. A mensagem de um Estado liberal, mínimo, tão melhor quanto menos intervir na vida dos cidadãos, foi alvo de capa da edição 539, de setembro de 2008.

Formas de encarar a realidade

Com a insinuação Perigo! Batata frita, a capa da revista resume a preocupação com a crescente regulação da vida das pessoas pelo Estado, marcada pela aprovação da Lei Seca e das restrições ao fumo. Assim, lança o próximo alvo das campanhas estatais de saúde pública: a gordura, grande vilã da obesidade. O que nos vem à cabeça é a sensação de que estamos sendo o tempo todo vigiados pelo Grande Irmão, numa releitura capitalista do enredo de 1984, de George Orwell.

Onze edições antes, no entanto, Época alardeava na capa da semana um novo tipo de comportamento, resultante da presença cada vez mais constante das tecnologias móveis em nossas vidas. A revista insinua, de cara, que celulares como o iPhone, da norte-americana Apple, vão revolucionar nosso modo de encarar o mundo. Trata-se de uma realidade. O celular já transformou o nosso dia-a-dia, é claro. A capa da edição nos convida, ainda, a entender como podemos usufruir melhor dessas novidades a partir de novos produtos disponíveis no mercado.

Vamos, agora, a este ano. Na edição 595, a garota da capa foi o livro eletrônico Kindle, novidade da gigante livraria eletrônica norte-americana Amazon. Com a insinuação ‘O último livro que você vai comprar’ e o escritor Paulo Coelho como coadjuvante, Época nos convida a pensar sobre o fim da era dos livros de papel. A revista revela outra questão surgida a partir do avanço das tecnologias: como o mercado editorial vai se sustentar?

Não ainda satisfeita em induzir formas de comportamento goela abaixo do leitor, Época soltou, em suas duas últimas capas, outros exemplos claros de como ela trata seu público. As insinuações ‘Seu próximo carro será elétrico’ e ‘A aposentadoria dos seus sonhos’ não deixam dúvidas de que a revista está propondo formas de encarar a realidade.

A lógica da mídia-mercado

Posto isso, voltemos ao caso das três primeiras capas citadas. Quando o governo quer intervir na vida das pessoas em prol do interesse público (limitando o consumo de cigarros, gordura ou álcool), o tema merece discussão. Por outro lado, quando há negócios envolvidos no meio, caso das tecnologias digitais, a estratégia é outra. Neste caso, o leitor é induzido a crer piamente em soluções tecnológicas revolucionárias que transformarão a sua vida para melhor. O que não é discutido, no caso, é a quem estas novidades estão servindo.

Quando exalta o Kindle e o iPhone, Época não está apenas enaltecendo grandes novidades eletrônicas. Pelo contrário, ela está reduzindo tais novidades a modelos de negócios que tenham viabilidade para as grandes corporações de comunicação. Os dois aparelhos têm modelos fechados de transferência de conteúdo. Os donos de celular da Apple e do livro eletrônico da Amazon só podem comprar informação das lojas da Apple e da Amazon, respectivamente.

Este modelo de negócios, que condiciona o uso de um aparelho a uma loja eletrônica própria do fabricante, é o contra-ataque da indústria cultural ao avanço das tecnologias de compartilhamento de conteúdo. O grande objetivo destas novidades não é ampliar ou melhorar o nível de informação que o leitor recebe. É, sim, restringir o uso das tecnologias a servidores de conteúdo mancomunados com o império da indústria cultural. Só assim a indústria cinematográfica de Hollywood ou as grandes editoras terão alguma chance de atrasar a revolução que detonou o monopólio da indústria fonográfica e vem derrubando, para o bem dos artistas e do público, o império das gravadoras.

Época levanta a bandeira de não aceitar intervenções na vida das pessoas. Mas tenta intervir, com as armas que tem. Eis a lógica da mídia-mercado.

Em tempo: reparem nas semelhanças entre as capas de Época citadas e das revistas Time e Newsweek (abaixo). E, para terminar, imagem do jornal O Globo em sua versão Kindle, noticiada em Época. Ao lado, foto impressa no jornal norte-americano New York Times sobre sua versão Kindle. Alguma semelhança?

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Jornalista, Três Corações, MG