Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Teorias conspiratórias e por que elas importam

Foto: Miva Filho/SES-PE

Kyrie Irving, uma das grandes estrelas do basquete mundial, faz parte dos cerca de 60 atletas da NBA que ainda não tomaram nenhuma dose da vacina contra a Covid-19, apesar da abundância de diferentes marcas de imunizantes no país mais rico do mundo, onde reside. Irving, que, segundo reportagem da revista Rolling Stone mencionada pelo jornal O Estado de S. Paulo no último dia 26, é vice-presidente do comitê executivo do sindicato dos jogadores de basquete dos Estados Unidos, faz parte de um contingente expressivo de americanos que ainda não receberam sequer uma dose da vacina: cerca de 35% do total da população. Como sabemos, os EUA vivem o que especialistas já chamam de “epidemia dos não vacinados”; isto tem causado cerca de 2 mil mortes diárias em decorrência da Covid-19, apesar, como já dito, da disponibilidade abundante de vacinas.

No entanto, para os propósitos deste texto, importa mais examinar e discutir as causas desse episódio do que suas consequências. Irving faz parte de um fenômeno que vem suscitando cada vez mais atenção e preocupação por parte de cientistas de diversas áreas do conhecimento, principalmente em razão de sua convergência com a comunicação em redes digitais: as teorias da conspiração ou teorias conspiratórias. Irving, assim como muitos de seus colegas da NBA e além, acreditam que as vacinas, principalmente da farmacêutica Moderna, contêm um chip que conecta pessoas negras a um computador-mestre para fins de controle e manipulação sociais.

A pandemia, segundo essa perspectiva — se não for, ela própria, compreendida como uma farsa conspiratória — serviria de pretexto e oportunidade para que grupos poderosos agissem secretamente e à revelia da vontade da pessoas, para dominá-las. Talvez a narrativa embutida neste enredo conspiracionista soe bastante inverossímil ou absurda para muitos, mas essa impressão pode levar à falsa conclusão de que as teorias conspiratórias sejam circunscritas a um irrelevante número de grupos e pessoas, que suas consequências findem por ser inofensivas ou que elas se resumam a roteiros muito extravagantes. No entanto, essa não é uma conclusão verdadeira.

Embora tenham ganho uma atenção maior nos últimos anos, as teorias da conspiração são um fenômeno que há décadas tem sido objeto de reflexão de especialistas do campo da filosofia empírica (principalmente da Epistemologia e da Filosofia da Ciência), da Psicologia, da Sociologia, das Ciências da Saúde e da Comunicação. E isto se dá, justamente, por conta da complexidade dos fatores e determinantes de ordem social, política, psicológica e ideológica que levam à adesão de indivíduos e grupos de pessoas a explicações conspiracionistas e, obviamente, às suas consequências.

Para que não fiquemos em indeterminações conceituais, as teorias conspiratórias, segundo um dos grandes especialistas do tema, Joseph E. Uscinski, se definem como explicações para eventos passados, presentes e até mesmo futuros, cujas causas são atribuídas à ação de um pequeno grupo de indivíduos poderosos que atuam secretamente em benefício próprio e contra o interesse público. Mais especificamente, grupos que atuam nas sombras com o intuito de atentar contra instituições fundamentais, aplicar grandes fraudes e inibir direitos e liberdades individuais.

Não é exatamente isto que está no cerne de muito do que se convencionou denominar de processos de desinformação e fake news? E é exatamente por esta razão que o interesse científico nas teorias conspiratórias ganha impulso nos últimos anos. Quando pensamos nas redes de desinformação e propaganda bolsonaristas, não estamos nos referindo, exatamente, a conteúdos que remetem a supostos eventos cuja razão se deve a algum tipo de atuação sombria de agentes poderosos interessados em impedir o presidente de transformar o país? Lembrem-se do episódio da facada de 2018. Segundo a ótica bolsonarista, tratou-se de uma conspiração para impedi-lo de chegar à presidência, cujo intuito era o de promover uma grande fraude eleitoral, atacar direitos e liberdades individuais e atentar contra instituições fundamentais (nesse caso, o instituto eleitoral).

No entanto, a hegemonia comunicacional da extrema-direita nas redes digitais nos últimos anos tem, talvez, disseminado uma falsa impressão de que o problema das fake news, da desinformação e de seus fundamentos, as teorias conspiratórias, se explique pelas predileções político-ideológicas de seus adeptos. Nada mais falso.

A esquerda, principalmente aquela simpática ao Partido dos Trabalhadores (PT), também construiu, instantaneamente, sua própria versão conspiracionista do episódio que ganhou, recentemente, uma boa ilustração audiovisual produzida pelo jornalista Joaquim Carvalho para o site Brasil 247. O próprio título é denotativo de que a tese é construída antes das evidências, que são espremidas e comprimidas para se encaixar à teoria previamente adotada: Uma fakeada no coração do Brasil. Seguindo o mesmo método (i)lógico bolsonarista, mas com os sinais invertidos, a versão à esquerda do atentado contra Jair Bolsonaro dá conta de que Adélio Bispo teria sido contratado por próprios membros da campanha para fingir um ataque com arma branca com o intuito de beneficiar o então candidato à presidência (https://www.cartacapital.com.br/opiniao/essa-fakeada-tem-cara-de-fake/). Benefício este contestado com dados por Jairo Nicolau em seu livro, O Brasil Dobrou à Direita.

Tomemos, ainda, a título de ilustração do nosso contexto nacional, o debate caloroso que se formou ao redor da Anvisa no que diz respeito ao episódio da não recomendação da vacina russa, Sputnik V. Como sabemos, o bolsonarismo já havia decidido previamente que a vacina russa não poderia ser confiável, independentemente dos pareceres dos técnicos da Anvisa, afinal, a Rússia é, para esse grupo, um país comunista, globalista e avalista da grande conspiração que tem no Foro de São Paulo um dos seus mais importantes núcleos de ação. Questão estritamente ideológica.

No entanto, uma parcela significativa que abomina ou só quer distância do bolsonarismo também já havia decidido que haveria um único parecer correto por parte da Anvisa: a aprovação da vacina. Do contrário, como acabou acontecendo, a Anvisa estaria rifando o rigor científico e técnico que deveria balizar suas decisões para servir ideologicamente ao Governo Bolsonaro. O que não se explica nessa tese é como, diante desse cenário, a mesma agência reguladora aprovou a recomendação da vacina produzida em São Paulo, cujos méritos políticos foram todos atribuídos ao então arqui-inimigo do presidente, João Dória, que assistiu Jair Bolsonaro fazer o impossível e inimaginável para sabotar a Coronavac.

Entre todas as teorias conspiratórias, principalmente aquelas edificadas diante de algum tema controverso, de alta temperatura na opinião pública, se postam as autoridades epistêmicas, ou seja, aqueles indivíduos que são treinados em um campo específico do saber e nos quais se deposita ou se deveria depositar autorização social para arbitrar sobre determinados fatos e fenômenos: dos especialistas de uma área específica às instituições, como a própria Universidade. No caso da facada em Jair Bolsonaro, as duas frentes conspiracionistas desqualificaram previamente e continuam desqualificando os pareceres dos técnicos da Polícia Federal que investigaram o caso, por exemplo.

Com as vacinas e a pandemia, vejam vocês, temos a mesma coisa, mas com contornos bárbaros de estupidez e perversidade; afinal, um governo que nega o conhecimento científico e as recomendações de autoridades epistêmicas, é um governo que adota a política da morte ao invés da política da vida, inclusive com o apoio de muitos profissionais de medicina que rogam para si a falsa autorização para falar sobre ciência, embora nunca tenham trabalhado por um segundo com pesquisas científicas que vivem de trocar por curandeirismos e evidências anedóticas. O resultado é o de que estamos a 5 mil mortes de um total absurdo de 600 mil óbitos por Covid-19 no país.

Embora não tratem exatamente de teorias conspiratórias, Pechar, Bernauer, Mayer (2018) mostram que os indivíduos não possuem maior ou menor grau de relação fiduciária com a ciência com base na posição que ocupam no espectro político-ideológico, mas aderem ou refutam evidências e consensos científicos com base na natureza do tema em questão e nas posições que sustentam face a governos e a corporações. Ou seja, um ambientalista à esquerda usa as evidências científicas para fortalecer sua convicção e seus discursos sobre a existência das mudanças climáticas, mas refuta as evidências oriundas das mesmas fontes sobre a segurança alimentar de produtos geneticamente modificados — no segundo caso, governos e corporações estariam criando falsas verdades para avançar em seus interesses particulares.

Por outro lado, um sujeito libertário à direita refuta o consenso científico sobre as mudanças climáticas, que, para seu combate, demandariam indesejáveis restrições governamentais ao livre mercado, mas abraça o consenso científico acerca dos alimentos geneticamente modificados. Afinal, trata-se de uma grande oportunidade de negócios.

Não é difícil encontrar teorias conspiratórias nas justificativas para essas aparentes contradições de posicionamento. Elas sempre estão engatilhadas para evitarmos dissonâncias cognitivas, ou seja, evidências que falsificam nossos sistemas de crenças e valores que, por sua vez, constituem identidades de grupo. É exatamente por isso que em um determinado momento, a fantasia da indústria farmacêutica, institutos de pesquisa e de cientistas inescrupulosos produzindo falsas evidências é sacada do bolso ou, então, mantida nele: tudo depende do encaixe normativo entre minhas crenças e o que as evidências dizem.

Teorias conspiratórias, assim como as fake news e a chamada desinformação, encontram nas lógicas estruturais e sociais de interação das redes digitais um ambiente propício para sua circulação, tanto que tendem a se disseminar com maior velocidade e amplitude do que informações tecnicamente apuradas pela imprensa de referência (Mahl, Zeng, Schafer, 2021). Algumas teorias conspiratórias são inofensivas e incrementam muitas formas de entretenimento, outras muitas induzem a comportamentos de risco, como desobediência a protocolos de saúde, hesitação vacinal, desemprego e fome (como no caso de ações governamentais contra alimentos geneticamente modificados), descrença nas autoridades científicas e desorientações que podem afetar largamente a saúde da política democrática. Trata-se, portanto, de um tema urgente que merece maior atenção por parte da nossa imprensa, principalmente diante do estado de calamidade política, social, econômica e sanitária em que vivemos.

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Camilo Aggio é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordena o Grupo de Trabalho Fenômenos e Práticas da Política Online (FPPO) da Associação de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica)

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Referências

MAHL, Daniela, ZENG, Jing, SCHAFER, Mike S. From “Nasa Lies” to “Reptilian Eyes”: Mapping Communication About 10 Conspiracy Theories, Their Communities, and Main Propagators on Twitter. Social Media + Society, p. 1-12, 2021.

PECHAR, Emily, BERNAUER, Thomas, MAYER, Frederick. Beyond Political Ideology: The Impact of Attitudes Towards Government and Corporations on Trust in Science. Science Communication, p. 1-23, 2018.

USCINSKY, Joseph E. Conspiracy Theory: A Primer. Londres: The Rowman & Littlefield Publishing Group, 2020.