O relatório final da CPI da Covid ainda não foi concluído, mas um resultado já é visível por todos: a bolha de silêncio que nos impedia de ver o que estava sendo tramado pelos negacionistas da pandemia simplesmente explodiu.
Conhecemos agora os detalhes de como o Kit Covid encobriu um vasto plano envolvendo ministros, altos funcionários públicos, políticos, empresários, hospitais e associações de médicos e profissionais da medicina para impedir que a economia nacional parasse por causa da doença e garantisse a sobrevivência política do presidente Bolsonaro.
Os depoimentos e dados divulgados pela Comissão Parlamentar de Inquérito mostraram também algo capaz de tirar o sono de nós, jornalistas. Ficou claro que fomos incapazes de identificar, divulgar e promover o debate público sobre um plano global que o governo pretendia impor ao país usando uma suposta cura do coronavírus para consolidar uma estratégia política ultraconservadora.
A imprensa não fez aquilo que os manuais jornalísticos colocam com um dos pilares da profissão: investigar dados, fatos e eventos que ameacem o bem-estar público. É claro que o governo usou o sigilo para ocultar seu plano, mas a CPI mostrou agora uma farta coleção de mensagens, vídeos e conversas entre os membros do gabinete paralelo que já permitiam levantar suspeitas sólidas sobre um projeto bem mais amplo e complexo do que o noticiário periférico e superficial da imprensa desde o início da pandemia.
Os grandes conglomerados midiáticos do país chegaram a formar um consórcio para produzir estatísticas sobre o número de casos e mortes causadas pelo vírus visando contornar a bolha de silêncio imposta pelo Ministério da Saúde. O consórcio poderia ter servido de base para um esforço conjunto de investigações sobre o que ocorria nos bastidores do governo. Uma união de ferramentas investigativas dos principais órgãos de imprensa poderia ter antecipado em vários meses o fim da bolha de silêncio e dado aos brasileiros as ferramentas para diminuir o saldo de 600 mil mortes causadas pela doença.
O medo da transparência
A pandemia já tem um ano e nove meses. Sabemos agora que o plano para transformar o coquetel da hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, colchicina, vitamina D, e outras drogas, na principal ferramenta para criar a chamada imunidade de rebanho. Mas desde março de 2020, a grande imprensa nacional baseou o seu trabalho no chamado jornalismo declaratório, ou seja, publicar apenas afirmações dos vários atores envolvidos no jogo de interesses da Covid.
Os dados divulgados pela CPI permitem concluir que a grande bolha de silêncio começou a se inflada quando o ministro Luiz Henrique Mandetta deixou o Ministério da Saúde. Várias justificativas foram apresentadas na época, mas uma explicação só ficou evidente agora: Mandetta usou a transparência informativa para tranquilizar a população, diante do pânico e insegurança gerados pelo aumento das mortes por Covid. Só que a transparência era incompatível com o plano bolsonarista de oferecer um remédio para a doença, buscando com isto que as pessoas trabalhassem e consumissem normalmente, o que era fundamental para o fortalecimento da coalização de extrema direita instalada no Palácio do Planalto, em Brasília.
Os depoimentos na CPI permitiram descobrir como interesses empresariais e financeiros ligados ao governo Bolsonaro estimularam o presidente a formar um gabinete paralelo composto por empresários, políticos, militares e médicos para desenvolver um remédio ou kit de remédios capaz de ser apresentado ao público como a solução para a pandemia e assim garantir que a economia não fosse atingida pela mortandade causada pela Covid. Claro que tudo isto tinha que ser feito na sombra e à margem das instituições oficiais, porque o governo tinha pressa em produzir resultados de impacto perante a opinião pública. Agora se sabe também que os negacionistas do gabinete paralelo apostaram no kit como a bala mágica contra a pandemia e encontraram no grupo hospitalar Prevent Senior o parceiro médico para realizar experimentos com pacientes e dar caráter científico ao projeto.
Zona de conforto
A imprensa foi uma coadjuvante importante no trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado para esvaziar a bolha de silêncio montada pelo governo. Sem a transmissão ao vivo das sessões, os desmandos do governo e de seus apoiadores ultraconservadores não teriam entrado para a agenda pública de debates. Mas o jornalismo poderia ter ido mais fundo do que os parlamentares, limitados por questões legais e jurídicas, como o repetitivo recurso de vários depoentes ao direito de ficar em silêncio. A investigação jornalística tem muito mais liberdade para ir à origem dos fatos e mostrar o seu contexto do que os procedimentos parlamentares.
O caso Prevent Senior, por exemplo, poderia ter sido investigado de forma muito mais rápida, ampla e detalhada do que a coleta de documentos promovida pelos senadores da comissão e seus assessores. Os jornais impressos e os telejornais da Rede Globo têm em suas equipes repórteres dotados de grande experiência em trabalhos investigativos. Teria sido de extrema relevância para todos os brasileiros que os jornais e telejornais tivessem publicado diariamente fatos, dados e eventos inéditos envolvendo os desmandos do governo e de empresas, em vez de reproduzir declarações de políticos, acusados e testemunhas.
Mesmo numa situação crítica, a imprensa preferiu não sair de sua zona de conforto, optando pelos procedimentos convencionais na cobertura de uma crise sanitária inédita na história do país e do mundo. A imprensa poderia ter ditado a agenda informativa e, consequentemente, condicionado os temas em debate na opinião pública. Na zona de conforto, é mais fácil e cômodo reproduzir e repercutir o que os grandes atores políticos decidem dizer ou fazer. A imprensa perdeu uma grande oportunidade de mostrar que é uma protagonista chave na defesa do real interesse público, num momento em que as autoridades optam por bolhas de silêncio para proteger seus próprios objetivos.
***
Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.