“Os italianos costumam dizer que o jornalismo se baseia em polêmicas”.
Dora Nunes é jornalista brasileira e vive na Itália desde 2016. Formada em jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), em Maceió, possui especialização em radiojornalismo e televisão também pela UFAL e é mestre em Ciências Políticas pela Fundación Internacional y para Iberoamerica de Administración y Politicas Publicas (FIAPP), de Madri.
No Brasil, Dora trabalhou em rádio, assessoria e cobertura política em Brasília, São Paulo e Maceió. Depois de viver na Inglaterra e na Espanha, estabeleceu-se na Itália, onde foi editora do site e da newsletter do Integration Now, projeto desenvolvido em parceria com o consulado brasileiro em Milão. Atualmente, trabalha para a editora italiana In Pagina e colabora com a revista Painel Alagoas, produzindo artigos sobre turismo, arte e curiosidades. Nesta entrevista, ela fala sobre sua visão do jornalismo na Itália.
Enio Moraes Júnior – No Brasil, você cobriu política por mais de 20 anos. Hoje, você se ocupa de temas relacionados a viagem e cultura. O que esse trânsito de países e de setor ensinou sobre a profissão?
Dora Nunes – Na verdade, quando resolvi vir para a Itália foi para um ano sabático e para repensar a minha profissão, afastando-me um pouco do ambiente da política. Sendo assim, foi muito fácil fazer a transição no “Velho Mundo”, que emana cultura e história, principalmente no sentido da preservação dos bens e tesouros culturais e da produção da arte totalmente acessível à população. Nem a pandemia e suas restrições inibiram essa produção. A leveza do jornalismo de arte, cultura e curiosidades tem alimentado a minha necessidade de escrever.
EMJ – Quais são as questões mais relevantes para mídia italiana? É possível comparar com os temas tratados na imprensa brasileira?
DN – Os italianos costumam dizer que o jornalismo, de uma forma geral, se baseia na polêmica, principalmente. Seria praticamente um jornalismo gossip. Mas, assim como no Brasil, a política é a pauta central, sobretudo nas transmissões de TV. Por relevância, primeiro a política nacional, seguida das pautas sobre o bloco europeu. A emergência sanitária se estabeleceu como tema permanente e boa parte da cobertura se concentra nisso em qualquer veículo.
EMJ – Como você avalia a cobertura dos direitos humanos e das minorias no país, especialmente questões relativas aos imigrantes?
DN – Em geral, a questão da imigração na Europa, é tratada de modo mais abrangente do que no Brasil. A Europa — e a Itália em especial — são portas de entrada para uma imigração mais problemática e com mais diversidade cultural e de costumes, seja na política, nos direitos humanos e, principalmente, na religião. Esses “choques culturais” demandam maior atenção por parte da sociedade. Como atuei nesta área, pude perceber que existe um certo aparato — seja nas esferas da administração, na sociedade civil ou nas organizações direcionadas ao tema — que converge para uma comunicação mais acessível e completa focada na resolução das dificuldades encontradas por esses imigrantes, legais ou ilegais. O que não quer dizer que a questão da cobertura jornalística seja efetiva, uma vez que esse tema chama mais a atenção da imprensa quando envolve algum tipo de polêmica.
EMJ – Quando falamos de jornalismo regional e local, abordamos as particularidades das comunidades locais. Como isso funciona no jornalismo italiano? Quais temas aparecem com mais frequência no jornalismo local?
DN – Como eu vivo em Milão, as pautas passam a ser bem nacionais também, mas em âmbito local, as notícias policiais e as tragédias cotidianas ganham um espaço relativamente grande, tanto nos impressos como nas transmissões. A peculiaridade se dá na estrutura dos grupos de comunicação e se particulariza na cobertura política, principalmente. A maior rede de TV do país, a RAI (Radiotelevisione Italiana), é estatal, mas os diretores são escolhidos pelo Parlamento. Sendo assim, os canais têm visões claramente definidas em termos de linha editorial, de forma que possam cobrir/atender todos os espectros políticos de direita, esquerda e centro. Existe ainda a rede de propriedade do ex-premiê Silvio Berlusconi que segue a orientação do seu partido, e que também atrai bastante audiência para alguns dos seus telejornais.
EMJ – As redes sociais mudaram o jornalismo nos últimos tempos. De que forma você, que mora na Itália há cinco anos, avalia que essas tecnologias interferiram na imprensa do país?
DN – As redes sociais guiam a agenda do jornalismo impresso, que se baseia também em pesquisa de top trendings. Eu avalio que essas redes empobreceram a produção do jornalismo de qualidade também por aqui. Enquanto o jornalismo impresso foi perdendo público, as notícias instantâneas e superficiais foram tomando cada vez mais espaço. A televisão não depende desse engajamento nas redes porque tem como pauta principal a política.
EMJ – Como o jornalismo está cobrindo a pandemia de Covid-19?
DN – Por ser o primeiro país ocidental a viver a pandemia de forma mais próxima, acho que, do ponto de vista jornalístico, a emergência provocou um surto comunicativo, exigindo a maior quantidade de informação possível para que não só a Itália, mas também todo o mundo, pudessem entender o que estava se passando. Até hoje a cobertura é constante e vem se concentrando, cada vez mais, nos aspectos relativos às consequências econômicas e à questão do passaporte verde, documento exigido para que se possa circular em praticamente todos os ambientes no país.
EMJ – O que você aprendeu em sua formação como jornalista na Universidade Federal de Alagoas, no Brasil, há 30 anos, está muito longe do modelo de jornalismo que você encontra hoje na Itália?
DN – Sim, o que aprendi na UFAL está bem longe do que se transformou o jornalismo de uma forma geral, ainda mais especificamente diante do que encontrei na Itália. Embora aqui ainda seja necessário o diploma, dezoito meses de estágio remunerado e um exame (semelhante ao que temos na OAB, para os advogados do Brasil). Do conteúdo à forma, a metodologia é diferente da que estamos habituados, sobretudo nas produções televisivas. Por aqui, os telejornais mais importantes não têm aquele formato padrão, como os nossos. São bem mais “reais” no sentido de que o conteúdo é mais importante que a forma. Na maior parte, as transmissões são bastante opinativas e primam pela naturalidade. Aquele jogo de câmeras ou encenação entre os apresentadores, tão comuns nas transmissões brasileiras, são técnicas usadas em programas considerados sensacionalistas.
Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.
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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: EnioOnLine.