Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A exaustão materna no Fantástico

Foto: SolStock

Quando aceitamos a proposta de escrever sobre mídia, gênero e raça aqui, no Observatório da Imprensa, aceitamos, ao mesmo tempo, um triplo desafio: (a) refletir sobre gênero e raça num contexto em que esta temática ganha mais visibilidade, mas também há retrocessos em relação a diversas conquistas de negros, mulheres, indígenas, população LGBTQIA+, entre outros grupos subalternizados; (b) trazer sempre uma perspectiva interseccional, destacando as diferentes nuances e camadas em que a vida social e os problemas de gênero e raça se inserem; e, por fim, (c) analisar criticamente o jornalismo — e o sistema de mídias brasileiro —, dando foco não apenas àquilo que precisa ser melhorado, mas também ressaltando os acertos e os bons caminhos encontrados.

É nesse sentido que se situa nosso texto desta semana. No domingo, 10 de outubro, fomos positivamente surpreendidas pela matéria de abertura do Fantástico (TV Globo), em que se abordava a exaustão materna, vivida por mulheres sem rede de apoio. Nossa surpresa positiva deve-se ao fato de que a principal revista eletrônica do país, em horário nobre, estava, em sua abertura, tratando de um tema que há décadas está na agenda dos movimentos de mulheres e movimentos feministas: a política do cuidado. A cientista política estadunidense Joan Tronto, autora do livro Caring democracy: markets, equality, and justice (New York University Press, 2013), defende que a responsabilização pelo trabalho do cuidado não pode recair sobre algumas pessoas específicas (mulheres, negras e pobres, em sua maioria), uma vez que tais atividades são necessárias a todos e todas. Uma equitativa distribuição dessas tarefas combate desigualdades, garante autonomia e, consequentemente, melhora a democracia.

A maioria das sociedades ocidentais, como a brasileira, é constituída a partir de uma fundamentação patriarcal, na qual a divisão sexual do trabalho atribui a mulheres a função do cuidado. Tais tarefas não se restringem a varrer a casa ou lavar pratos, mas engloba um conjunto de atividades corporais e intelectuais que se refere a cuidar dos futuros membros adultos da sociedade — as crianças —, das pessoas idosas ou com alguma enfermidade permanente ou temporária, além dos membros economicamente ativos e (cor)responsáveis pelo sustento — os homens. Essa situação não é reconhecida formalmente como trabalho. É como se fosse uma obrigação compulsória dos corpos femininos: uma vez que geram, consequentemente, teriam uma vocação natural ao cuidado.

A reportagem especial do Fantástico surpreende também porque a opção editorial foi organizá-la a partir das vozes das mulheres que vivem essas rotinas extenuantes. Frases como “A maternidade assim dói” permearam o encadeamento da narrativa, apresentando a desglamourização de ser mãe e combatendo o arquétipo de heroína. Esse é, de fato, um enfrentamento da lógica de uma vocação natural ao cuidado e ao sacrifício materno que aprisiona os corpos, as subjetividades e as potências das mulheres.

É importante que se diga que essa situação não começou a ocorrer em razão da pandemia, mas se agravou significativamente devido a ela. Dados de uma pesquisa realizada pela Sempreviva Organização Feminista e pelo site Gênero e Número, entre abril e maio de 2020, mostraram que metade das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia. E as desigualdades entre as mulheres também se evidenciam: 62% das mulheres rurais passaram a ter tal responsabilidade e as mulheres negras relataram ter menos suporte nas tarefas de cuidado. Outro levantamento importante, agora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda com dados de 2019, refere-se ao uso do tempo com afazeres domésticos ou cuidado com pessoas: por semana, os homens dedicavam a essas tarefas 11 horas, enquanto as mulheres, 21,4 horas, ou seja, o dobro do tempo.

Foi a viralização de um vídeo nas redes sociais de uma mãe que, sozinha, passou a madrugada, entre amamentação de seu bebê e o acalento de seu filho mais velho, que despertou o interesse do programa global. O médico pediatra Daniel Becker, que compartilhou o vídeo, provocou, na legenda, um conjunto de reflexões sobre os possíveis contextos daquelas cenas e, em todos, destacou como é desumana aquela situação. Isso é o que milhares de mães enfrentam diariamente no mundo e em nosso país: um nível de exaustão físico e mental absurdo, somado às cobranças pelo sucesso, saúde e bom desempenho de seus filhos e delas mesmas.

Quantas vezes, quando a criança está se comportando de uma forma não condizente com o regramento social, sai a frase: “cadê a mãe dessa criança?”. Ou mesmo, a quantas mulheres que se tornaram mães e saíram de casa sem seus filhos foi feita a pergunta: “a criança ficou com quem?”. Sem contar o infame ditado popular: “quem pariu Mateus que o embale”. Todas essas expressões trazem, de fundo, a obrigatoriedade de a mãe ser a responsável única pelo cuidado de filhas e filhos, além de ser a culpada quando algo está errado.

Ao vocalizar que essas mulheres se sentem exaustas e precisam de apoio, o Fantástico abre uma fresta para popularizar o debate e abordar a distribuição desigual do cuidado das crianças no país, ainda mais no início de suas vidas. Esse momento, ressalte-se, vai muito além do cuidado atrelado à amamentação: junto ao vínculo biológico dos primeiros meses da criança ao corpo feminino vem um vínculo sociopolítico construído que delega, então, à figura materna toda a responsabilidade do cuidado por toda a vida.

O que o vídeo postado nas redes sociais mostra é que esse regime de esforço não é saudável. E nós acrescentamos: também não é justo. A carga mental e física do cuidado atrelado apenas às mulheres mães não é justa. Os companheiros (homens e mulheres) de mães apenas “ajudarem” nas tarefas domésticas e nos cuidados com as crianças não é justo. As chances e salários desiguais no mercado de trabalho para mulheres mães ou em idade fértil não são justos. As cobranças de familiares, amigos e de outras mulheres, encobertas na forma de piadas ou conselhos, não são justas. Mães precisam de uma rede de apoio e de uma estrutura social, com ampliação de políticas públicas, que as acolham e se responsabilizem também pelas futuras gerações.

E antes que corramos o risco de simplificar a questão e dizer que “foi e sempre será assim”, avanços recentes nas conquistas das mulheres em todo o mundo reforçam a constatação de que a forma de lidar com o cuidado pode e deve ser tratada pela sociedade, pela mídia e pela política de forma distinta a que temos visto no cotidiano brasileiro. Em um de nossos vizinhos, a Argentina, foi aprovada recentemente uma lei na qual se reconhece o cuidado materno como trabalho, podendo ser utilizado para o cálculo da aposentadoria. Em países como Alemanha, Finlândia, Noruega, Suécia e Islândia, a licença parental busca o equilíbrio do cuidado das crianças entre os responsáveis, independente do gênero.

Esses exemplos servem para demonstrar que a carga de trabalho com o cuidado dos filhos e o cotidiano da casa deve ser melhor distribuído entre diferentes corpos na sociedade, reconhecido como trabalho em si e também ser alvo de políticas públicas concretas e de reportagens em horário nobre na televisão. Uma sociedade que se pense mais equitativa precisa reconhecer que as mulheres mães não são apenas mães: elas são irmãs, amigas, namoradas, esposas, profissionais, mulheres no conjunto de suas multiplicidades, subjetividades e desejos.

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Lucy Oliveira é mãe da Maria Luiza, de 3 anos, e de João Vicente, de 5 meses. É jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Instagram: @lucy_olivr

Viviane Gonçalves Freitas é jornalista, doutora em Ciência Política (UnB), com residência pós-doutoral em Ciência Política (UFMG). É professora no curso de Jornalismo e na especialização Comunicação, Diversidade e Inclusão nas Organizações, ambos da PUC Minas. Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, gênero e raça. Instagram: @vivianegf14