A Corte Constitucional do Equador validou, no dia 6 de outubro de 2021, a intervenção das Forças Armadas nas penitenciárias do país. Essa decisão põe fim à delimitação entre o que é segurança interna — e que diz respeito à alçada da polícia — e o que é proteção da soberania nacional — que é, por sua vez, de incumbência do exército. Longe de ser algo excepcional, tal decisão reafirma uma mudança de paradigma que se pode observar na maior parte das democracias latino-americanas.
Uma sangrenta “vendeta”, em uma penitenciária perto de Guayaquil — no dia 28 de setembro —, acendeu as disputas entre reclusos associados a gangues rivais. O confronto resultou na morte de 119 indivíduos encarcerados: maior número de óbitos em prisões latino-americanas. A polícia, por sua vez, sucumbiu ante a intensidade do drama e o governo se viu forçado a chamar o exército. Decisão que foi tomada no dia 29 de setembro pela via de um decreto presidencial, validado mais tarde pelo Tribunal Constitucional.
Evidentemente, a urgência lhes impôs este recurso drástico, heterodoxo em princípio em uma democracia, fato que trouxe à tona memórias infelizes do período em que o Equador, tal como se deu em muitos países da região, viveu sob a vigência de um regime militar no final do século XX. As autoridades de Quito podiam ter feito outra escolha a não ser essa? Evidentemente não. Apesar dos vários sinais — no transcurso de muitos meses — indicando ser essa uma crise iminente, o orçamento destinado às prisões e à polícia não foi ampliado. A cifra no valor de 38,8 milhões de dólares, acordada em 2019, não foi respeitada: apenas 3,5 milhões de dólares foram efetivamente utilizados, resultando na manutenção da superpopulação prisional. Segundo números oficiais, estimava-se, em 2021, um total de 38.000 reclusos, em um cenário em que a capacidade real é de 28.500. Além disso, existe um notório déficit de 70% referente ao número de guardas prisionais. Colocado contra a parede, o executivo apelou ao exército: derradeiro instrumento para assumir o controle de uma situação que se tornou incontrolável.
Outros governos da América Latina têm enfrentado este dilema. Um a um, eles têm recorrido ao exército e alimentado a necessidade de uma intervenção militarizada, quer se trate de circunstâncias como essa de motins prisionais, como também frente a manifestações sociais, quer se trate de questões de segurança pública, situações de crise em que a polícia não tem sido capaz de restaurar a calma, nos últimos anos. O que é mais surpreendente é que essa instituição parece ser cada vez menos capaz de levar a cabo a sua tarefa principal, nomeadamente, garantir a paz interna.
Devido à falta de recursos, as forças “policiais” em geral estão mal equipadas e mal treinadas. São permeáveis, o que provavelmente explica a corrupção. Os Estados federados, como o Brasil e o México, são particularmente afetados. Polícias, guardas prisionais e bombeiros no Rio de Janeiro complementam os seus rendimentos participando de grupos de extorsão, conhecidos como milícias. No México, a polícia local serve frequentemente aos cartéis do narcotráfico.
Em contextos assim, a polícia tem sido frequentemente desligada pelas autoridades públicas do ofício da manutenção da ordem, ou, excepcionalmente, como força capaz de lidar com situações de crise social, tais como motins prisionais. A mobilização do exército equatoriano, em setembro de 2021, pela autoridade eleita não é um caso isolado. O Chefe de Estado de Honduras, em 20 de junho de 2019, pediu ao exército que interviesse contra uma manifestação de cunho político e social. Em 20 de janeiro de 2020, o presidente chileno procurou e obteve a aprovação do Senado para autorizar o deslocamento dos militares “no caso de uma grave deterioração da ordem pública”. Outros governos tomaram nota desta evolução e fizeram da exceção algo permanente. Desde 1° de janeiro de 2019, o Brasil tem cooptado oficiais para assumirem a responsabilidade de cargos ministeriais e administrativos. A gestão da pandemia do coronavírus expandiu esta prática. No México, desde 1° de dezembro de 2006, os exércitos têm gradualmente substituído a polícia para lidar com os desafios do tráfico de drogas. A criação de uma Guarda Nacional, colocada sob a autoridade operacional do Secretariado da Defesa Nacional (Sedena), em 26 de março de 2019, expandiu o âmbito dos poderes militares. Desde então, as forças armadas expandiram os seus poderes aos portos e alfândegas por decisão presidencial, datada de 17 de julho de 2020.
Até que ponto pode chegar tal militarização no interior de uma democracia? O peso do passado ainda atua como salvaguarda. A memória dos ditadores que brutalizaram populações, da Guatemala ao Chile, é ainda amarga. Ainda assim, não haverá também o risco de que tal deriva militarizada — universalmente partilhada — ultrapasse os limites? Muitos no Equador culpam a crise econômica e financeira dos últimos anos e a austeridade ligada à ajuda concedida pelo FMI pela origem de diversos conflitos. A pandemia de Covid-19 agravou este estado de coisas. As desigualdades sociais que nunca foram enfrentadas degradam ainda mais o equilíbrio ético e social, assim como a estabilidade. Portadoras de crises graves, colocam os poderes contra a parede levando-os a romper com proibições democráticas, valendo-se das forças armadas.
Texto publicado originalmente em francês, em 15 de outubro de 2021, na seção ‘Analyses’, no site IRIS Institut de Relations Internationales et Stratégiques, Paris/França, com o título original “Équateur, enseignements d’une militarisation en démocratie”. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Thiago Augusto Carlos Pereira. Revisão de Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos-SP).