Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os aplausos para Nelson Freire aliviam as vaias para Bolsonaro

Foto: Reprodução

Temos muito poucas alegrias artísticas quando juntamos o binômio pandemia e pandemônio político e cultural como acontece no Brasil hoje. Nelson Freire sempre foi um vento de arte, talento e prazer que era obrigatório seguir por onde soprasse. A Sala São Paulo supria esse buraco negro que se infiltrou em nossas vidas brasileiras e sempre foi uma alegria formar fila para comprar DVDs ou CDs depois do concerto e ganhar um autógrafo do envergonhadíssimo artista de toque limpo, sensibilidade poética, qualidade sonora de gênio.

Um pouco antes de tropeçar nas pedras portuguesas da calçada da Barra da Tijuca, Posto 3, no Rio, quando cancelou todos os concertos há dois anos, Nelson Freire era a estrela do Concertgebouw de Amsterdã, teatro que tem uma das melhores acústicas do mundo. Eu estava na cidade, dividindo quarto com cinco amigas, integrando um grupo de pintores de rua, Urban Sketchers. A viagem duraria pouco mais que um fim de semana, mas demos um jeito, no dia 24 de julho de 2019, de ficar para assistir, nas últimas filas da sala, ao Concerto nº 4 de Beethoven onde Nelson seria a estrela, acompanhado pela Nationaal Orkest van Belgie.

Quando vejo o apedrejamento de Bolsonaro por onde passa pelo mundo, antes em Nova York, agora na Itália, retenho nos ouvidos a alegria de ter visto a platéia holandesa aplaudir toda de pé durante mais de 10 minutos, com bis, este músico, aclamado como um dos maiores pianista da segunda metade do século XX.

Se Nelson Freire hoje precisasse recorrer à lei Rouanet para seus concertos, estaria cancelado ou teria de escolher um repertório religioso. Se dependesse de apoio para lançar seus DVDs ou CDs ficaria no anonimato, porque quem gosta de música clássica é aquela mesma gente que compra livros, os ricos.

Ele comentou com sua amiga Miriam Dauelsberg, presidente da produtora Dell’Arte, que estava deprimido com a queda e as consequências no ombro; achava que nunca mais voltaria a tocar, perfeccionista que era, da linhagem musical de João Gilberto. Agora, mais deprimidos ficamos nós sem o som da sua música que nos fazia esquecer a armadilha cultural que este governo nos pregou. E sem poder aliviar a vergonha que cobre o nome do Brasil com governantes perdidos na selva e nos números que só fazem subir a emissão de gás carbônico, o desemprego, a fome, os mortos por Covid.

Só nos resta reter nos ouvidos os aplausos ininterruptos, celestiais, para este brasileiro iluminado para encobrir o alto desprestígio do país de Nelson Freire lá fora.

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).