Hoje, nosso texto começa com um rápido exercício de memória. Se voltarmos 20 anos no jornalismo brasileiro, vocês, leitores, profissionais ou não da comunicação, conseguem lembrar de quantas/os/es jornalistas negras/os/es ocupavam cargos nas redações pelo país ou eram repórteres e apresentadoras/res de TV? E quantas vezes vocês liam, ouviam ou assistiam reportagens que abordavam temas como feminicídio, racismo, lgbtfobia, questões indígenas, entre outras temáticas relacionadas à diversidade e à igualdade? E, atualmente, é mais fácil de se lembrar de profissionais e de temáticas nos nossos jornais, telejornais, podcasts, rádios, internet relacionados a negritude, periferia e gênero?
Essa facilidade de recordar se deve ao fato de que a grande imprensa no Brasil está, realmente, tratando de pautas mais relacionadas ao debate de gênero e raça no país, bem como tem dado sinais de sensibilidade à importância da ocupação dos espaços de trabalho e de comunicação de corpos anteriormente invisibilizados no tecido social. Um exemplo disso foi o tão comentado painel de jornalistas negras realizado pela Globo News como retratação pelo vexatório debate sobre racismo conduzido por jornalistas brancos na emissora posteriormente à morte por sufocamento do afro-americano George Floyd, causada por um policial branco, que gerou manifestações por todo mundo.
Entretanto, esses passos parecem tímidos diante dos enormes desafios de criar um meio jornalístico mais igualitário. A pesquisa Jornalismo Brasileiro: gênero e cor/raça dos colunistas de O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em 2019, revela a falta de diversidade no perfil desses profissionais: “O gênero masculino é predominante nos três jornais e perfaz, respectivamente, 74%, 73% e 72% do total de colunistas em cada um. Em relação à cor/raça, a desigualdade é ainda mais severa, com os dados de colunistas de cor branca atingindo 91% para o jornal O Globo, 96% para a Folha de S.Paulo e 99% para o Estadão”.
E, se por um lado, ainda constatamos essa lamentável realidade, por outro, parece que algo tem mudado nas redações e no jornalismo, nos últimos tempos. Como pesquisadoras e profissionais da área, percebemos esse movimento e fizemos o mesmo exercício de memória proposto no início do texto. Mas, também, nos sentimos impelidas a caminhar além desses sinais e uma pergunta continua a nos incomodar: será que essa ampliação da visibilidade que temos visto atingir os veículos da grande imprensa é um sopro temporário ou é um furacão? Em outras palavras: será que o campo jornalístico — ainda dominado por três ou quatro grandes grupos, centralizado no sul e sudeste do país, e com uma maioria ainda de profissionais homens e brancos — está, de fato, atentando para a urgência de se fazer uma comunicação que retrate e questione as violências cotidianas sofridas pelos corpos invisibilizados socialmente no país? Será que esse resultado que estamos enxergando tem como causas um movimento profundo de alteração das relações de produção e de trabalho nas redações brasileiras ou é apenas uma cortina de fumaça para atender a uma audiência cada vez mais conectada com pautas como a do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)?
Responder a essas questões não é tarefa fácil. Cientes disso, para ajudar nessa reflexão, resolvemos convidar três mulheres atuantes no telejornalismo brasileiro e que têm, de diferentes formas, contribuído para a visibilidade de pautas relacionadas a raça, território, gênero e diversidade na grande imprensa. São elas:
Luciana Barreto, âncora da CNN Brasil, referência no debate racial no jornalismo nacional e autora de um dos capítulos do livro Tempestade perfeita: sete visões da crise do jornalismo profissional (História Real, 2021), em que aborda a urgência de se debater o racismo na constituição das redações e na produção das reportagens. Entre as condecorações recebidas, estão o Prêmio Nacional de Jornalismo Abdias Nascimento (2012), pela reportagem “Negros no Brasil: brilho e invisibilidade”, e o Prêmio Sim à Igualdade Racial (2018), na categoria “Em Pauta”, devido a sua atuação na mídia contra o racismo.
Tábata Poline, repórter do Fantástico (TV Globo) e uma das idealizadoras do “Rolê nas Gerais” (Globo Minas), programa que estreou em 2019, trazendo pautas com enfoque no dia a dia das periferias. Em 2020, o episódio “As faces do racismo”, que mostrou como a vida de pessoas da periferia é afetada pela discriminação racial, recebeu Menção Honrosa, na categoria “Produção Jornalística em Vídeo”, do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
Ana Carolina Raimundi trabalha na TV Globo desde 2004, tendo começado na GloboNews, onde atuou por oito anos, como produtora, editora, repórter e apresentadora. Atualmente, integra a equipe do Fantástico, no qual estreou, em outubro/2021, a série “Isso Tem Nome”, sobre as violências cotidianas que acometem as mulheres e que precisam ser nomeadas e combatidas, como o preconceito de idade (etarismo) e a violência psicológica (gaslighting).
As três aceitaram prontamente nosso convite e responderam questões sobre se e como as relações cotidianas das redações têm se modificado e quanto ainda é preciso avançar. Agradecemos pelas respostas potentes e compartilhamos aqui essa conversa franca e acolhedora. Como elas, acreditamos que este é um caminho sem volta, em busca da construção de uma sociedade mais justa, na qual o papel de profissionais do jornalismo se faz primordial na ruptura de estereótipos e na abertura para outras perspectivas.
Observatório da Imprensa: Luciana, você sempre trouxe o debate racial para a interface com o jornalismo e se tornou uma referência na área sobre isso. O que considera que foram suas principais dificuldades e conquistas nessa trajetória?
Luciana Barreto: Acredito que a maior dificuldade foi pressionar por um debate interno das redações (especialmente em televisão) em um momento em que isto era uma “não-questão”. As empresas de comunicação se sentiam confortáveis com o olhar absolutamente negligente sobre as pautas raciais. Levantar este debate, lembro bem, era incômodo e constrangedor. Muitos colegas de profissão eram silenciados. Eu me sentia muito solitária às vezes porque era a “inconveniente”, de certa forma. Já ouvi de colegas que empresa X ou Y amava meu trabalho jornalístico, mas me achava “muito posicionada”. Tenso! Eu sempre dizia que não tínhamos mais tempo ou espaço para “ser leve”. Minha missão, no fim, era constranger mesmo, criar um tensionamento que nos trouxesse a um momento melhor. Episódios trágicos como o do George Floyd aceleraram ainda mais a discussão. A conquista é ver o debate pautado.
OI: Tábata, você participou do processo de elaboração do programa “Rolê nas Gerais”. Conte um pouco como foi. Quais as principais dificuldades e os principais ganhos?
Tábata Poline: Entrei na Globo para cobrir um período de férias de uma funcionária. Na época, eu produzia matérias para o portal G1. Esse freela ressuscitou em mim uma vontade que já tinha desde pequena: ser repórter. Passei pelo G1, produção de todos os jornais e muitas tentativas frustradas de ir pra reportagem. Mas, já nessa época, eu sabia que só faria reportagem se conseguisse ser eu mesma e, principalmente, falar com os meus. Fiz um esboço de projeto para o MG1 [jornal diário regional] que, naquele momento, tinha objetivo de mostrar, num quadro semanal, o que a favela tem. Assuntos diversos, mas sempre na perspectiva das periferias. Projeto negado uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes… juro! Nesse meio tempo, o caminho que encontrei foram as vídeo reportagens, matérias que fazia usando o telefone celular e contando histórias por vezes invisibilizadas pela sociedade. Esse projeto deu certo e estava fluindo bem, quando houve uma mudança de direção na Globo em Minas. Marcelo Moreira assumiu a direção do jornalismo e quis saber um pouco sobre esse trabalho de vídeo reportagens. Contei para ele que, na verdade, a ideia era um quadro. Ele topou o quadro, eu quase desmaiei de felicidade. Ele cresceu a ideia e aprovou aquele pequeno projeto como um programa. Assim nasceu nosso filhote. Chegou Renata do Carmo [editora executiva e repórter], com mais de 10 anos de experiência em programas, Saulo Luiz [repórter cinematográfico], Saulo Vieira [repórter cinematográfico] e Frederico D’Ávila [repórter cinematográfico] brilhando na captação de imagens e conceito visual do programa, Xiko César com edição de imagens e finalização impecáveis. E eu lá no meio dessas feras realizando o sonho de “falar pra muita gente”. O Rolê nas Gerais, sem falsa modéstia, é um marco importante para o jornalismo em Minas. Poderíamos aqui enumerar infinitos pontos positivos desse programa, mas o principal deles é: SOCIEDADE, NÓS EXISTIMOS, TEMOS O QUE DIZER E VOCÊS VÃO NOS OUVIR.
OI: Ana Carolina, você está apresentando a série “Isso Tem Nome”, que estreou recentemente no Fantástico e aborda as cotidianas violências que acometem as mulheres. Como a ideia surgiu?
Ana Carolina Raimundi: Sempre fui uma criança que tinha um desconforto imenso com as relações de poder desproporcionais entre homens e mulheres. Minha família sempre me achou estranha por isso, venho de uma família machista. Com o tempo, a minha inquietação pessoal me levou a buscar entender as microviolências que atravessam o universo das mulheres desde o início da vida. Nunca tinha realmente parado para pensar por que é deselegante alguém perguntar a idade de uma mulher e por que não é assim com os homens. Por exemplo, nas histórias infantis, o homem velho é o velho sábio e a mulher velha é a bruxa, por quê? Por que é “comum” uma mulher ser chamada de louca nos relacionamentos, mesmo ela tendo certeza do que viu? Por que a mulher ouve que, se não ceder nisso ou naquilo para o homem, ela vai terminar sozinha? Durante a pandemia, me aprofundei na pesquisa sobre os nomes dessas violências e fiz a proposta de levar esses questionamentos para um projeto no Fantástico, para que outras pessoas também tivessem respostas e foi assim que nasceu o projeto “Isso Tem Nome”.
OI: Você acha que tanto a TV aberta quanto por assinatura está abordando mais temas do debate de gênero, raça e território, indo além dos estereótipos? A que você atribui isso? Fale um pouco da sua experiência.
ACR: Estamos justamente nesse momento de mudança, de abertura, de diálogo, fugindo dos clichês dos estereótipos. Acho que isso está acontecendo agora, demorou, mas vejo mudanças. A popularização e democratização do conhecimento pela internet têm ajudado nisso. Estamos conhecendo novos autores, novos estudos, novas vozes, que antes não encontravam espaço e que agora estão à distância de um clique, de um compartilhamento. Eu mesma, nos últimos anos, passei a seguir, nas redes sociais, gente que vem enriquecendo muito o meu mundo das ideias, me mirando em realidades que abriram o meu campo de visão e de opinião. O conhecimento plural enriquece os debates. Siga as pessoas certas, dê unfollow [deixar de seguir] terapêutico em quem for necessário também.
LB: É inegavelmente perceptível a mudança da mídia em relação às questões de gênero, raça e território. Uma mudança que não se limita à televisão. No entanto, não considero que foi um despertar “de dentro para fora” ou “de cima para baixo”. Não nasceu de uma conscientização ou de uma revisão das próprias empresas de comunicação, mas de fatores externos. Em linhas gerais, nos últimos vinte anos, vimos crescer uma classe de profissionais liberais negros, um maior aumento da presença do negro nas universidades, um fortalecimento da consciência racial deste grupo dentro da academia através de coletivos negros… O resultado imediato foi uma maior pressão social, o uso do poder econômico e a cobrança por posicionamento sobre marcas e empresas. Acredito que foi um movimento que exigiu mudanças intensas de quem trabalha com comunicação, do jornalismo à publicidade.
TP: Mesmo recém-chegada nas redações, acabei presenciando vários processos de mudanças estruturais, não só na emissora onde trabalho, mas na sociedade e em outras empresas como um todo. Agora, a maior parte da população — formada por pretos, em sua maioria mulheres — percebeu que tem poder de fazer barulho. As televisões notaram a nossa existência ao passo que nos conscientizamos de quem somos e de que, se não estivermos representados, não seremos mais massa de manobra. Um movimento potente, necessário e, infelizmente, atrasado. Mas, estamos na TV só agora? Lena Santos foi a primeira negra a sentar numa bancada de jornal em Minas Gerais e eu só fui saber disso agora, já adulta. O apagamento da nossa história é uma estratégia conveniente para as empresas. A questão é: ciente disso, o que vou fazer já que ocupo um espaço de visibilidade? Costumo sempre me apoiar numa frase de Ella Baker, que certa vez disse: “Nós, que acreditamos na liberdade, não podemos descansar até que ela venha”. E essa liberdade tem vindo por todos os rostos negros que vemos na TV, juntamente com tantos outros que também estão assumindo postos nos bastidores. Atribuo tudo isso a todos e todas que lutam por nossos direitos desde que nos desembarcaram em terras brasileiras. Um salve aos ancestrais.
OI: Como você compreende a utilização de termos como “feminismo(s)” e “racismo” em matérias jornalísticas? Eles afastam as pessoas ou são uma possibilidade de abrir o debate para outros públicos? Você acha que poderiam ser mais usados ou são utilizados com a mesma intensidade?
TP: Sabe aquela sensação que vem pra gente quando vemos, hoje, uma bandeira do Brasil na porta da casa de alguém? (Infelizmente, até nosso senso de patriotismo esse desgoverno conseguiu afetar). Talvez seja essa a sensação que muito telespectador sinta ao assistir à TV e se deparar com termos como “feminismo” e “racismo”. A estrutura social é tão bem elaborada para normalizar e descredibilizar aquilo que nos mata, que as pessoas, infelizmente, não compreendem a necessidade de entender tais termos e o que eles realmente significam. Ainda não temos redações plurais a ponto de entenderem esses gatilhos e tentarem mudar a estratégia. Como produzo e faço pautas muito voltadas para essas discussões, percebo que quanto mais reforço os termos, mais alcanço a nossa “bolha”. Mas confesso que hoje tenho a modesta pretensão de atingir os demais, provocar pequenas revoluções em indivíduos que ainda não compreendem que são aliados.
ACR: Acho que esses termos precisam ser mais usados, sim. Toda vez que alguém cometer racismo, temos que repetir essa palavra mil vezes, para que fique muito claro que isso é inadmissível. Acho também que muita gente ainda, por desconhecimento, tenha medo desses termos. No caso do feminismo, por exemplo, ouço, na minha própria família, ideias absolutamente equivocadas sobre o significado da palavra e do conceito, mas temos que bater nessa tecla. Só com educação, conversa, diálogo frequente vamos transformar esse medo em entendimento e poder, e esse poder em transformação real da sociedade.
LB: Óbvio que temos que falar de racismo e feminismos nas matérias! Inclusive, o tema tem que começar nas redações. Temos que ter treinamento antirracista nas redações, venho defendendo isto há algum tempo. Um jornalismo que não abranja estes temas é um jornalismo capenga. Falta vivência nas redações. Faltam perspectivas nos olhares e nas abordagens. Falta inovação. Em tudo isso, a diversidade pode ajudar. O tema racial, por outro lado, ainda é muito indigesto para o Brasil. Não temos tempo para leveza. Pessoas estão sendo assassinadas neste país por conta do racismo e do machismo. A abordagem é urgente.
Este é o nono texto que publicamos, no Observatório da Imprensa, desde o início deste ano. Acreditamos que seja nosso papel, tanto social quanto profissional, trazer para este espaço as discussões sobre gênero e raça, além de outros marcadores das desigualdades que, em suas intersecções, oprimem diversas pessoas. Ao traduzir conceitos, nas análises que fizemos da mídia e seus processos, estávamos também escrevendo sobre o que acreditamos, sobre a sociedade mais justa que buscamos construir cotidianamente.
Como as três colegas entrevistadas ressaltaram acima, há muito trabalho ainda pela frente. As mudanças estão ocorrendo, mesmo que aos poucos. É preciso reforçar que essa luta não cabe apenas aos grupos subalternizados, como mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência, população LGBTQIA+, migrantes, residentes em periferias. A mudança começa em se compreender que essa conquista é diária e que demanda a adesão de todas/os/es, em cada espaço, em cada oportunidade, em cada decisão em que pode fazer a diferença.
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Viviane Gonçalves Freitas é jornalista, doutora em Ciência Política (UnB), com residência pós-doutoral em Ciência Política (UFMG). É professora no curso de Jornalismo e na especialização Comunicação, Diversidade e Inclusão nas Organizações, ambos da PUC Minas. Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, gênero e raça. Instagram: @vivianegf14
Lucy Oliveira é mãe da Maria Luiza, de 3 anos, e do João Vicente, de 5 meses. É jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Instagram: @lucy_olivr