O debate brasileiro sobre os riscos da desinformação e das “fake news” parece ter como ponto comum a compreensão de que os riscos que permeiam essa temática exigem a intervenção regulatória do Estado.
Nesse cenário, mais um passo foi dado com a apresentação, pelo relator Orlando Silva (PCdoB/SP), do Substitutivo ao Projeto de Lei Nº 2.630 de 2020 (que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), que está pronto para votação pelo Grupo de Trabalho (GT-NET) da Câmara dos Deputados criado para dar um parecer sobre o tema.
De início, cabe ressaltar que os problemas para os quais o referido Projeto de Lei busca respostas regulatórias não são apenas das plataformas digitais que atualmente utilizamos, mas são questões — com ressonância em decisões individuais e coletivas como as que precisamos tomar durante esta pandemia — que dizem respeito à liberdade de expressão e ao direito à comunicação de todas e todos.
Se por um lado é possível afirmar que se a responsabilização direta das plataformas digitais pelo conteúdo produzido por terceiros não deve ocorrer, por outro, isso não significa a inexistência de deveres e exigências para nortear o processo de moderação de conteúdos por elas praticados, sobretudo quando alcançam uma dimensão capaz de influenciar diretamente o curso/desfecho de processos democráticos.
Portanto, à ideia de uma regulação definida por atores privados deve-se acrescentar a regulação estatal, a partir de uma concepção “tecnologicamente neutra”, que concentre a atenção na atividade desenvolvida por meio da tecnologia e não para a tecnologia em si. Afinal, a título de exemplo, um serviço de mensageria privada pode ser utilizado de maneira “viral” e então, a partir daí, utilizado como ferramenta voltada para divulgação em massa de conteúdos a um amplo público.
Em continuidade, ao princípio da regulação tecnologicamente neutra deve ser acrescentado aos modelos regulatórios a permissão para que cada plataforma se adapte às regras em conformidade com as suas especificidades tecnológicas, como constante no art. 12 do Substitutivo apresentado pelo relator na Câmara.
Dessa forma, é adequado o foco na transparência e na exigência de respeito ao devido processo para as atividades de moderação realizadas pelas plataformas, tanto com exigência de notificação de indivíduos em hipóteses de remoção ou restrição de conteúdos e direito de recurso, quanto a partir da determinação de elaboração de relatórios informando sobre os procedimentos e decisões relativas à intervenção ativa de contas e conteúdos gerados por terceiros, que impliquem na exclusão, indisponibilização, redução de alcance, sinalização de conteúdos e outras que restrinjam a liberdade de expressão, bem como as medidas empregadas para o cumprimento da lei (art. 9).
Uma outra importante medida presente no substitutivo é a atribuição ao Comitê Gestor da Internet (CGI.br) — que tem uma composição multisetorial e conformação técnica — da responsabilidade de acompanhar o cumprimento da lei e fixar as diretrizes para a elaboração do Código de Conduta de provedores. Ainda assim, é preciso reconhecer que indicações principiológicas somente impactam efetivamente os comportamentos quando há a estruturação de Autoridades regulamentadoras com autonomia suficiente para a fiscalização.
Esses e outros pontos presentes no Substitutivo — que expressa avanços significativos no combate à desinformação — já foram suficientes para que as plataformas digitais e alguns parlamentares (que se beneficiam da produção e circulação de conteúdos enganosos em larga escala) iniciassem uma mobilização pelo adiamento da votação do PL 2630. Uma nota divulgada pela Coalizão Direitos na Rede ajuda a entender o que está em jogo.
Em nosso entender, a série de debates e audiências promovidas pela Câmara dos Deputados ao longo dos últimos meses (que resultaram positivamente em uma proposta que prevê mais transparência, mais proteção para o usuário e obrigações para as plataformas digitais), a importância de regulação das plataformas digitais e o necessário enfrentamento a uma problemática que segue ferindo a democracia brasileira não deixam dúvidas: o PL 2630 precisa ir à votação ainda este ano.
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Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professor e pesquisador de Políticas de Comunicação. Tatiana Stroppa é advogada, doutora em Direito, professora e pesquisadora das liberdades comunicativas. São, respectivamente, coordenador e vice-coordenadora do GT Políticas e Governança da Comunicação da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).