A frase cunhada pelo sociólogo italiano Alberto Mellucci soa paradoxal: os profetas antecipam o futuro e não o que já está acontecendo. No entanto, o autor do livro Challenging Codes (Desafiando os Códigos, sem tradução) usa a expressão para ilustrar sua tese sobre como a multiplicação atual de movimentos sociais de protesto expressa algo que já aconteceu e que vai influenciar nosso futuro.
A ascensão mundial da extrema direita, por exemplo, configura um movimento social cujas origens vêm da virada para o século XXI, quando ganharam corpo as primeiras reações conservadoras ao turbilhão de mudanças culturais deflagradas pela digitalização acelerada. O fenômeno assumiu uma visibilidade global com a chegada de Trump à Casa Branca e se espalhou pelo mundo alimentado pelas tensões, incertezas e conflitos alimentados pela quebra de paradigmas na política, economia e na cultura, tanto em países ricos como em nações pobres.
Os movimentos de extrema direita ocorrem num mundo já marcado pela presença cada vez maior de mobilizações antirracistas, em defesa do meio ambiente, a favor da igualdade de gêneros, contra a homofobia, pela igualdade econômica e social, pela liberdade religiosa bem como em defesa dos direitos de indígenas e minorias étnicas. Isto sem falar no caso dos refugiados por guerras e das migrações intercontinentais para fugir da fome e miséria.
Diante deste caldeirão de efervescência social, a tendência normal dos analistas políticos e pesquisadores acadêmicos contemporâneos é tentar entender os novos movimentos a partir de sua capacidade, ou incapacidade, de promover mudanças modernizadoras, ou reacionárias, com base no princípio de causas e efeitos. A preocupação dominante é com os resultados concretos alcançados pelos movimentos sociais. Quem são os possíveis ganhadores e os prováveis perdedores.
Acontece que o mundo mudou muito desde a chegada da internet e, principalmente, da avalanche informativa, cuja materialização mais conhecida é o caos das redes sociais virtuais. Baseados na abundância de informações, segmentos sociais antes invisíveis ganharam audiência para seu desejo de serem ouvidos pelo resto da sociedade. É claro que isto balançou o precário equilíbrio social vigente até o início da era digital, despertando medo e insegurança em relação à multiplicação de movimentos como o das mulheres, negros, indígenas, trans e homossexuais, imigrantes etc.
A lógica tradicional dos comentaristas políticos na imprensa tradicional valoriza sobremaneira tudo aquilo que se relaciona ao jogo do poder. Isto faz com que a cobertura dos movimentos sociais seja enfocada apenas por seus resultados e não pela capacidade das ações coletivas promoverem novos códigos culturais, como é o caso da consciência antirracista e antidiscriminatória em questões de gênero.
O fator cultural na agressividade conservadora
O fato de os movimentos sociais estarem avançando no terreno cultural, conquistando corações e mentes na opinião pública, mostra que eles estão mais preocupados com a agenda pública de debates do que em ganhar postos na administração federal, estadual ou municipal. E isto assusta quem teme as incertezas decorrentes do surgimento de novos comportamentos e valores.
Os conservadores e ultraconservadores são o segmento social mais contaminado pelo medo porque seguem uma histórica tradição de valorizar o que é sólido, material, estável e previsível. O medo de perder o controle sobre a realidade desestabiliza, intelectual e emocionalmente, os extremistas de direita que reagem tentando destruir tudo aquilo que ameaça sua forma de pensar e viver, o que inevitavelmente requer, quase sempre, o uso da força, seja ela física ou psicológica.
O medo da mudança social e suas consequências é o que alimenta o rápido crescimento da extrema direita no mundo inteiro. Prova disto é o uso intensivo da retórica baseada na volta ao passado, às concepções cientificamente ultrapassadas como a anti-vacina e a obsessão deletéria em relação a tudo o que o pensamento progressista construiu matéria de instituições, normas e valores democráticos.
A surpreendente intensidade dos protestos contra a vacinação e contra o lockdown registrados nos últimos dias em países tidos como tranquilos como Holanda, Australia, Áustria e até na pacata Nova Zelândia mostra que a classe média está muito assustada com as inevitáveis mudanças que a pandemia está provocando no tecido social da maioria das nações. As pessoas preferem “enterrar a cabeça na areia” a enfrentar as incertezas econômicas geradas por um lockdown ou a incomoda convivência com o Coronavírus e suas variantes. O problema não está nas políticas governamentais de combate à covid, mas no medo das mudanças causadas pela pandemia.
A partir das ideias de Melucci é possível entender por que é ineficaz o enfrentamento dos negacionistas a partir de relações de força. Isto só realimenta a agressividade dos extremistas de direita, como os seguidores do movimento QAnon ou do ex-assessor de Trump e amigo de Eduardo Bolsonaro, Steve Bannon. É o medo do futuro que alimenta a tendência à formação de “bunkers” extremistas, agressivos e dispostos a tudo porque acham que estão lutando pela sua sobrevivência num mundo visto por eles como hostil.
Só o medo do que é novo e desconhecido pode explicar por que pessoas que, desde a infância já se vacinaram várias vezes, agora rejeitam uma imunização que estatisticamente já se comprovou eficiente na redução da letalidade da pandemia e na eliminação do caos hospitalar.
Este paradoxo é um desafio para o jornalismo decifrar, porque ele tem tudo a ver com a qualidade da informação que é levada às pessoas. A recusa à vacinação e às medidas de controle dos surtos da pandemia é agora mais uma questão de informação pública, logo uma tarefa da imprensa e dos jornalistas, do que um problema clínico.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.