Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Redes de Solidariedade e Afeto: a defesa da vida em tempos de COVID-19

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Saúde

Desde fevereiro de 2020, quando a primeiro caso da doença foi confirmado no Brasil, a pandemia surpreendeu famílias, governos e instituições. Foi uma tragédia anunciada, já que o Sars- CoV-2 é um novo tipo de coronavírus. Nosso cotidiano foi alterado, com rotinas necessárias para o enfrentamento da pandemia. Atividades presenciais foram reduzidas para evitar aglomerações.

O governo Bolsonaro executou uma estratégia institucional de propagação do vírus. A pesquisa realizada pela Faculdade de Saúde Pública da USP em parceria com o Conectas demonstrou que, através de medidas oficiais e de falas do presidente, de propaganda contra a saúde pública e de informações sem comprovação científica, foram promovidas ações contrárias às medidas sanitárias de prevenção, enfraquecimento da adesão popular a essas medidas e de ataques às instituições públicas de saúde e pesquisa.

Também em fevereiro de 2020, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou o perigo da “infodemia”, que se propaga de forma mais rápida do que o vírus.

Em janeiro de 2021, uma pesquisa realizada por uma rede internacional de universidades, entre as quais a UNICAMP, comparou a resposta à pandemia em países de vários continentes. Os resultados do projeto apontam cinco falácias comuns aos diferentes países analisados: 1) que uma pandemia pode ser gerenciada com um “manual”; 2) que as políticas públicas são mais importantes que o contexto político; 3) os indicadores de sucesso e fracasso são sempre nítidos e os resultados podem ser bem definidos e medidos objetivamente; 4) o assessoramento por cientistas permite que os formuladores de políticas definam as melhores políticas públicas em todos os casos; e 5) que a desconfiança no assessoramento dado pelos especialistas em saúde pública reflete um “analfabetismo científico”. Analisando as relações entre as respostas da pandemia e a forma como a sociedade aceitou ou reagiu a elas, os países estudados foram classificados como: “caóticos”, “de controle” e “de consenso”. Brasil, Índia, Itália, Reino Unido e Estados Unidos configuraram o grupo que representou o maior fracasso (DARÉ, 2021).
Face à situação de catástrofe e ao desmonte acelerado das instituições no país a partir da posse do presidente Bolsonaro em 2019, a pandemia vai ser enfrentada por Redes de Solidariedade e Afeto, iniciativas coletivas de cidadãos de todas as idades, profissões e crenças, associações, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, universidades e instituições públicas e privadas para defender a vida (SILVA; GITAHY; BALDASSA, 2020).

Neste artigo, analisamos três experiências: Rede de Atendimento e enfrentamento à violência doméstica, Redes de enfrentamento da pandemia nos territórios tradicionais e Rede Brasileira de Mulheres Cientistas em que se destacam a participação das mulheres. Nossa hipótese é a de que essas experiências apontam para caminhos de sobrevivência para a humanidade, no sentido apontado por Klein (2020) de que serão anos de reparação e de Krenak (2020).

I. Rede de Atendimento e Enfrentamento à Violência Doméstica

Durante a pandemia, os índices relacionados à violência doméstica cresceram drasticamente. Apesar dos avanços nas políticas públicas a partir da Lei Maria da Penha de 2006, houve cortes de verbas federais que em 2020 representaram menos de 10% do total previsto para ser investido (BRASIL, 2020).

Nesse cenário adverso, na cidade de Paranavaí no noroeste do estado do Paraná se estabelece uma rede de suporte e não-isolamento das vítimas. Nela, mulheres ligadas a diferentes instituições se uniram para a criação de pautas comuns no enfrentamento à violência. Em 2015 foi recriado o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher – CMDM e em 2016 foi estruturado e se tornou o elemento central de construção e apoio à Rede de Atendimento às Mulheres no município.

Essa Rede conta com a atuação de Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), Secretaria de Estado da Saúde – SESA, projeto Patrulha Maria da Penha da Polícia Militar, o Ministério Público do Paraná, Delegacia da Mulher, Secretaria Municipal da Saúde e o Núcleo Maria da Penha: um projeto de extensão coordenado pela Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR.

Essa rede heterogênea além de articular seus componentes, se destaca por ações e estratégias de comunicação com a população local, junto às escolas e através das mídias locais como jornal impresso, rádio e televisão (DIAS et al, 2020). O Conselho Municipal, representa um elemento essencial na luta contra a violência doméstica. Durante a pandemia, foram criadas linhas de comunicação através de aplicativos de texto e ampliação da divulgação de serviços de apoio em mídias locais e nas mídias sociais.

II. Redes de enfrentamento da pandemia nos territórios tradicionais

Os povos e comunidades tradicionais constituem diversos grupos tais como os povos e comunidades indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, pescadores artesanais mais vinte e quatro categorias que ocupam “espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica” (BRASIL, 2007, artigo 3º, inciso II), utilizados de uma maneira temporária ou permanente. O enfrentamento à pandemia nestes territórios tradicionais foi assumido por Redes de Solidariedade e Afeto, que desenvolveram ações em frentes relacionadas à segurança alimentar, vigilância em saúde, comunicação e reivindicações destes povos. Problemas como a falta de testes, de subnotificação de casos e de protocolos de tratamento afetam de maneira mais intensiva estas populações (SILVA; GITAHY, BALDASSA, 2020).

Pesquisa realizada pela UNICAMP, no Laboratório de Tecnologias e Transformações Sociais (LABTTS), mapeou alguns desses esforços, que em sua maioria são desenvolvidos de maneira autônoma por entidades não-governamentais, como universidades, movimentos sociais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil.

Um deles é a Plataforma “Emergência Indígena”, que coletou dados de maneira decentralizada, a fim de qualificar e monitorar o avanço da pandemia. A Esta ação coletiva envolveu quase uma dezena de organizações indígenas e organizações-não governamentais, que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) (SILVA; GITAHY, BALDASSA, 2020).

A Plataforma “Quilombo sem COVID” foi criado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que contabiliza e divulga os boletins epidemiológicos dos territórios nos quais atua.

O Instituto Socioambiental (ISA) articula outra ação, chamada de “Painel COVID-19”, que traz dados referentes às comunidades quilombolas e indígenas, de forma cruzada. Com isso, elenca informações como número de hospitais, perímetro dos municípios e territórios, e o mapa de riscos.

O grupo “Observatório dos Impactos do Coronavírus nas Comunidades Pesqueiras” monitora o avanço da pandemia nas comunidades pesqueiras, além de produzir boletins referentes às ações governamentais, comunitárias e sobre o auxílio emergencial.

Para comunicar as formas de enfrentamento ao COVID-19 para os diferentes povos e comunidades tradicionais, foram desenvolvidos ainda materiais informativos em forma de cartilhas e vídeos. Em algumas das cartilhas destacam-se os detalhamentos de informações sobre o vírus, sobre os casos regionais da doença e comparações com outras enfermidades. Há também dados acerca do recebimento do auxílio emergencial. Tais ações são promovidas por Redes de Solidariedade e Afeto compostas por universidades de distintos estados brasileiros, institutos de pesquisa, associações dos povos tradicionais, coletivos, movimentos sociais, organizações não-governamentais e agentes de saúde.

Como resultado do trabalho feito pelo LABTTS, foi lançada a Biblioteca Virtual “Covid-19 e os Territórios Tradicionais”, composta pelos materiais informativos e pelas plataformas citadas.

III. Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

Em abril de 2021, um grupo de cientistas mulheres de diversas áreas se formou com o propósito de enfatizar a situação das brasileiras na crise humanitária pela qual o país atravessa diante do posicionamento do governo federal de não combater a pandemia. Um posicionamento que ilustra a atual ausência de políticas públicas voltadas às mulheres e a outras categorias sociais afetadas nesta crise. A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas visa exigir a implementação de políticas públicas em seis área inicialmente estabelecidas: saúde, educação, violência, trabalho e emprego, assistência social e segurança alimentar e moradia e mobilidade.

Foram estabelecidas cinco metas prioritárias, que englobam a atuação da Rede junto aos gestores públicos, oferecendo a eles conhecimento técnico para auxiliá-los em soluções voltadas às seis áreas especificadas; ampliação do debate público sobre os problemas que afetam as mulheres na pandemia; diálogo e sensibilização das autoridades em relação à crise humanitária e a possibilidade de novas pandemias no futuro; a sistematização e difusão das experiências exitosas que ocorrem neste momento de pandemia; e o fomento e assessoria no campo da memória, da verdade e justiça, no sentido de valorizar as vítimas e experiências dos profissionais que atuam no combate à pandemia, bem como os agentes públicos e privados que contribuíram para a propagação do COVID-19.

A Rede já possui mais de 4 mil mulheres cadastradas e vem produzindo notas técnicas que apresentam uma notável intersecção das áreas e de especialistas. Dentre estas, destaca-se a preparação de um relatório que pretende contribuir para os debates sobre a CPI do COVID-19, instaurada no Senado Federal em abril de 2021. Evidencia-se também a interconexão entre instituições de ensino superior do Brasil e de outros países, além da articulação de outras frentes específicas de atuação, que vão além das propostas iniciais da Rede. Em seus grupos de comunicação, nota-se ainda as colaborações entre as cientistas no que se refere a materiais e informações para a produção científica.

A importância das universidades e das instituições públicas de saúde e pesquisa no combate à COVID-19

As universidades públicas são fundamentais no enfrentamento à pandemia, mesmo diante de um intensivo desmonte promovido pelas políticas governamentais recentes. Com a suspensão das atividades presenciais, técnicos administrativos, professores e alunos mantiveram o atendimento às demandas rotineiras e promoveram ações solidárias de combate à pandemia.

Darin (2020) agrupa as iniciativas desenvolvidas pelas universidades brasileiras como respostas à pandemia em três frentes: a promoção de informação confiável, a promoção de ciência e tecnologia e o apoio à comunidade. As atividades acadêmicas voltadas à promoção da informação confiável são essenciais para que os cidadãos compreendam os efeitos da pandemia e as medidas de contingenciamento. Muitas universidades criaram páginas na internet para divulgar atualizações e notícias sobre as atividades acadêmicas, as pesquisas e avanços científicos e as ações de apoio à comunidade. Instituições como a UNICAMP promoveram ainda atividades de extensão, de cultura e de criação de canais de divulgação científica em diferentes mídias e formatos, como os podcasts.

O impulsionamento científico e tecnológico nas instituições de ensino e pesquisa vai além da formação e qualificação profissional de pesquisadores durante a pandemia. Inclui a realização de redes de cooperação de pesquisa, de criação de novos equipamentos e soluções como exames para COVID-19, máscaras de proteção e ventiladores mecânicos, produzidos com materiais de custo menor que os convencionais (DARIN, 2020), dentre outras atividades.

O suporte às comunidades visa atender às demandas locais específicas, como o oferecimento de consultorias gratuitas, cursos à distância, criação de materiais informativos de linguagem acessível, atendimento psicológico e o suporte às administrações públicas locais.

Sonhos para “adiar o fim do mundo”?

Para Naomi Klein (2020) a atual crise civilizatória é resultado da confluência das crises econômico-social, ambiental e da saúde e demonstram o fracasso das ideias do neoliberalismo e da globalização que criam um mundo onde “a vida não é útil” (KRENAK, 2020). É clara a necessidade de reinventar nossas vidas e sonhar com um novo horizonte.

Essa reinvenção passa pela ação coletiva e articulada para reparar os danos causados pelas concepções dicotômicas que por tanto tempo influenciaram as sociedades contemporâneas. A cosmovisão que valoriza o “andar em constelação” (KRENAK, 2020, p.21) representa o cerne das interações das pessoas com o seu entorno, com a vida na Terra e à promoção das relações de afeto, de cuidado e de resistência.

Como consta em uma das cartilhas distribuída para o enfrentamento à COVID-19 junto aos povos tradicionais: “nos cuidar também é resistir”. O cuidado mútuo vai no sentido de buscar a aceitação do outro, fator essencial para a evolução da própria humanidade em seu sentido mais amplo, que engloba todos os seres do planeta, não deixando de lado nenhuma vida (KRENAK, 2020).

As experiências aqui analisadas reforçam práticas de solidariedade e afeto que se contrapõem a um mundo onde “a vida não é útil” no qual reinam o individualismo, consumismo e competição predatória, aumentando a violência e a corrosão da sociabilidade.

Essas experiências se caracterizam pela defesa dos direitos humanos e da Constituição de 1988 enfrentando os retrocessos, o neoconservadorismo e a erosão da democracia.

O papel de mulheres nessas Redes tem sido fundamental. Estão enfrentando a “infodemia” e a propagação de notícias falsas e levando às comunidades informações e apoio, inclusive de modo remoto. Os recursos tecnológicos possibilitaram a interconexão das ações coletivas em diferentes espaços e ampliação das possibilidades de cooperação.

Elas nos inspiram para pensar em “anos de reparação” e em “sonhos para adiar o fim do mundo”.

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Erica da Cruz Novaes Gonçalves Dias é doutoranda do Programa de Política Científica e Tecnológica – DPCT/IG da UNICAMP (ericacngdias@gmail.com)

Leda Gitahy é professora do Programa de Política Científica e Tecnológica – DPCT/IG da UNICAMP (leda@unicamp.br)

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Referências bibliográficas

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BRASIL. Portal da Transparência. Disponível em: < http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos-superiores/81000-ministerio-da-mulher-familia-e- direitos-humanos>. Acesso em: 13/10/2020.

DARÉ, E. Por que respostas tão diferentes à pandemia? 2021. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2021/01/25/por-que-respostas-tao-diferentes- pandemia. Acesso em: 28/04/2021.

DARIN, T. O papel essencial da Universidade Pública no combate à Covid-19. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/05/o-papel-essencial-da-universidade-publica-no- combate-ao-covid-19/. Acesso em: 28/04/2021.

DIAS, E.; GITAHY, L.; MARQUES, M.I.; CAMPOI, I. Conselhos municipais dos direitos da mulher como ferramentas democráticas: a experiência do município de Paranavaí – PR. Trabalho apresentado no 4º Seminário – Desmonte das Políticas Públicas e Novas Capacidades Estatais para o Futuro Pós-Pandemia, 2019.

ESCOBAR, H. Orçamento 2021 compromete o futuro da ciência brasileira, 2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/orcamento-2021-compromete-o-futuro-da-ciencia-brasileira/. Acesso em: 10/04/2021.

KLEIN, N. Los años de reparación. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Amsterdam: TNI – Transnational Institute, 2020. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/ 20201119061901/Los-anios-reparacion.pdf. Acesso em: 23/03/2021.

KRENAK, A. Avida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

____Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SILVA, L.; GITAHY, L.; BALDASSA, T. O enfrentamento da pandemia nos territórios tradicionais. Observatório da Imprensa, n.1113, 2020. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br /coronavirus-covid-19/o-enfrentamento-da-pandemia- nos-territorios-tradicionais/. Acesso em: 30/03/2021.