Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Perdido em um mar de anúncios

Que estamos o tempo todo cercados de anúncios, todo mundo sabe. Nossos celulares nos “escutam” e os algoritmos estão constantemente trabalhando para trazer publicidade individualmente e cuidadosamente curada para cada um.

Empresas de marketing digital estimam que um cidadão comum vê entre 4 e 10 mil anúncios por dia, e sabe-se lá como nossos cérebros lidam com essa quantidade de informação e de publicidade. Mas, e quando os anúncios não parecem bem com anúncios?

Uma área que vem crescendo muito no Brasil é o marketing de conteúdo, e essa estratégia publicitária transbordou dos blogs e redes sociais para o jornalismo. Cunhado em 2004 pelo diretor de marketing do McDonald’s, o conceito de “jornalismo de marca” saiu do papel e se tornou uma prática corrente em muitos veículos ao redor do mundo: o New York Times faz, o Washington Post faz, os jornais locais do interior do estado fazem. Caiu no gosto das empresas jornalísticas e, principalmente, dos anunciantes.

Uma pergunta que pode surgir é: “se é de marca, será que é mesmo jornalismo?”. Essa questão eu ainda não estou pronta para responder. O que se sabe, de fato, é que esse modelo de anúncio vem sendo bastante positivo para a receita das empresas, que publicam inúmeros conteúdos pagos diariamente, lotando suas homepages e portais digitais com matérias que tem a roupagem do jornalismo, mas que são, no fundo, um produto publicitário.

É claro que o jornalismo e a publicidade sempre dividiram espaço — afinal, anunciantes são a principal fonte de receita dos impressos, tendo sido superados pela circulação pela primeira vez apenas em 2014, segundo dados da Associação Mundial de Jornais e Publishers de Jornais (WAN-IFRA). E, considerando que a transição para o digital começou com uma digitalização do jornal impresso, é natural que a publicidade também seja relevante para as contas dos portais.

Há uma frase famosa entre os profissionais da área que diz que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique, todo o resto é publicidade”. Quem disse isso pela primeira vez foi o empresário William Randolph Hearst, dono de uma rede com mais de 30 jornais estadunidenses. Partindo dessa citação, o jornalismo de marca é jornalismo, ou é publicidade? Esse tipo de conteúdo ocupa um espaço de fronteira, com características de um e de outro, mas não sendo nem bem um, nem bem outro. É difícil definir algo que bebe tanto de duas fontes, mesmo que ocupem boa parte das homepages dos principais jornais do país (e do mundo).

E os jornalistas, como ficam nisso tudo?

Quando as empresas jornalísticas se propõem a publicar anúncios em formato de matérias, alguém precisa produzi-las —  e quem melhor do que os próprios jornalistas, habituados à rotina de apuração, entrevistas, pesquisas e redação?

Precarizada, a profissão vem perdendo muitos profissionais, que debandam para outras áreas, sejam elas adjacentes ou completamente opostas. Muitos jornalistas formados e com experiência na área abandonam o trabalho nas redações para atuar em assessorias de imprensa, agências de comunicação e como social media, e outros transformam suas carreiras e seguem novos rumos. Com a abertura de MEIs e MEs, jornalistas passam a ser empresas e a prestar serviços avulsos, sem contrato, garantias ou benefícios — entre eles, a produção de conteúdos publicitários e de marketing.

Em artigo apresentado na SBPJor, em 2017, o pesquisador Aldo Schmitz analisa a migração dos jornalistas para o marketing de conteúdo, um fenômeno que ampliou as frentes de trabalho nas quais os profissionais da área podem atuar, mas que provoca um senso de “dispersão” devido ao uso do saber-fazer jornalístico a serviço do marketing e da publicidade. Segundo o autor, é um paradoxo: “O marketing, que o jornalismo entrevê pelo viés depreciativo, contrata o jornalista para fazer aquilo que ele desdenha. Essa transmutação de jornalista para “marqueteiro” encaixa-se no conceito weberiano de “desencantamento do mundo”, ou seja, os desapegos às crenças e ideologias impostos pela racionalidade — “de não fazer só o que se quer, mas o que é possível fazer” —, atribuindo novas tarefas e responsabilidades. Desse modo, a trajetória profissional despluga-se da formação original para se conectar ao plano de vida, em outros fios paralelos, conectores de informação” (SCHMITZ, 2017, p. 15).

Essa transformação implica no desapego à imagem tradicional do jornalista, aquele que publica “o que alguém não quer que se publique”, mas também na abertura de um novo campo profissional. Esse modelo de anúncio movimenta inúmeros jornalistas freelancers, mas fica a pergunta: será que eles ainda se consideram jornalistas, quando escrevem matérias de um jornalismo de marca?

A experiência do leitor

Se a proeminência dos conteúdos pagos é decepcionante para quem estuda ou trabalha com jornalismo, para o leitor comum deve ser, no mínimo, confuso. Entrar em um portal de notícias e se deparar com uma imensidão de conteúdos pagos, assim como abrir um jornal ou revista e ver mais e mais matérias sinalizadas como “Conteúdo Publicitário” não é exatamente a melhor forma de reconquistar a confiança de um leitor que duvida cada vez mais das publicações jornalísticas.

É sabido que o jornalismo enfrenta crises diversas — no modelo de negócios, na credibilidade, no relacionamento com seus públicos e em diversos outros âmbitos. Por isso, pergunto: será que investir no formato de jornalismo de marca é uma boa pedida, ou um tiro no pé? Essa pode ser uma saída para os veículos, que buscam receita e que oferecem um tipo de anúncio diferenciado para as empresas; pode ser uma boa oportunidade para os anunciantes, que exploram seus valores e identidade, criando conexões mais profundas com seu público-alvo; mas, diante desse cenário, qual é a resposta do leitor? Como é mensurada a experiência de quem é, em termos de mercado, o “consumidor final” do jornalismo?

Infelizmente, esse texto traz mais perguntas do que respostas, e não vai ser aqui que iremos encontrar a fórmula para o modelo de negócio ideal do jornalismo digital, que ainda busca maneiras de se manter em meio às quedas das assinaturas, paywalls e redes sociais. Mas, quem sabe, possamos iniciar uma reflexão sobre uma prática que já se estabeleceu nas empresas jornalísticas brasileiras e que balança os pilares de isenção e objetividade sobre os quais muitas delas construíram suas bases.

Texto publicado originalmente por objETHOS.

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Natália Huf é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS.