No burburinho frenético da Nova York de 2001, se alguém levantasse a hipótese de um ataque às torres gêmeas e ao próprio Pentágono, em Washington, no mínimo seria chamado de louco, como fizeram os amigos e parentes de Noé quando ele entrou na arca bíblica. Do mesmo modo, em nossos tempos, qualquer um que divulgue informações sobre os riscos ambientais que a humanidade corre neste século 21 rapidamente será chamado de ‘profeta do caos’, ‘catastrofista’, ‘apocalíptico’ etc. Talvez por isso os pauteiros encontrem alguma dificuldade para cobrir mais e melhor a questão ambiental. Afinal, vivemos num mundo tecnologicamente avançado e sempre haverá tempo de deter qualquer iceberg que possa colocar em risco nosso reluzente Titanic.
O problema é que a questão ambiental não surge no horizonte, da noite para o dia, fisicamente corporificada como um iceberg ou mesmo uma rocha espacial desgovernada. Para isso existe monitoramento continuado de todos os objetos em órbita. O dano ambiental é como uma doença que vai progredindo no organismo e quando não medicada a tempo, aí sim, eclode de modo irremediável contaminando o corpo, matando a vida. Teimamos em não perceber que as questões do meio ambiente estão todas integradas, globalmente. Os problemas do efeito-estufa ou da falta de água potável ou da miséria urbana não existem ‘fora’ de nosso meio. Nós todos estamos inseridos neles, seja contribuindo com o agravamento da situação em alguma medida, seja como vítimas reais ou potenciais desses males globalizados.
Sendo assim, torna-se necessário ‘localizar’ a pauta ambiental para discutir na nossa realidade os perigos reais que nos rondam. Se houvesse esse debate, essa reflexão, esse desejo de contribuir com a educação ambiental do cidadão, teríamos um noticiário ambiental menos espetaculoso, pirotécnico, superficial, escandaloso, folhetinesco ou apenas voltado para o agronegócio ou o mero turismo ecológico. Pois em qualquer cidadezinha do Brasil, por menor que seja, existem assuntos ambientais a serem noticiados, mas todos nós, jornalistas, achamos que isso é um problema muito distante, não nos afeta, não nos interessa, não temos nada a ver com isso. No máximo encartamos cadernos ambientais produzidos em regiões distantes.
Tanto que, enquanto em outros países da América Latina e mesmo da Europa e EUA, já funcionam inúmeros cursos de pós-graduação em Jornalismo Ambiental, no Brasil pode-se contar nos dedos a quantidade de cursos superiores voltados para esta preocupação, destacando-se algumas experiências no Rio Grande do Sul (estado pioneiro no ambientalismo brasileiro), em São Paulo e em poucas regiões do Norte-Nordeste.
Com as barbas de molho
Diante do desinteresse da mídia sobre um assunto que já é considerado mais grave do que o terrorismo internacional (o que não é pouca coisa), resta ao leitor recorrer aos jornais alternativos e à internet para uma informação mais completa sobre o tema. Não é em todo o país que as pessoas têm acesso a jornais alternativos porque eles, sem apoio publicitário de empresas e governo, vivem às voltas com dificuldades econômicas que acabam restringindo sua circulação a alguns segmentos urbanos, o que é uma pena.
Mas, em qualquer região do Brasil, quem tem um computador ligado à rede pode acessar centenas de endereços eletrônicos que tratam da situação ambiental no mundo inteiro. Como não existe jornal sem acesso à internet, em nossos dias, é certo que essas milhares de informações ambientais, atualizadas diariamente, estão disponíveis para todos os pauteiros, que poderão repercuti-las em suas áreas de circulação, sempre com bons resultados, dependendo do nível de apuração das matérias e a criatividade do texto, bem como da programação visual (fotos, paginação etc).
Não é nenhuma novidade que a internet divulga muita informação que carece de apuração melhor, de confirmação. Mas, pelo menos como pauta, tais informações podem ser úteis. De qualquer forma, elas traçam um cenário preocupante para o futuro da humanidade. Tomei notas rápidas de algumas que podem nos deixar com as barbas de molho e até perder o sono. Vejam uns poucos exemplos:
Lixo
A produção de lixo por pessoa, ao longo da vida, está estimada em 25 toneladas. Hoje, somos um pouco mais de 6 bilhões de almas no planeta, mas até 2100 ‘seremos’ 14 bilhões. Então, se nada for feito, a montanha de lixo vai incomodar bastante, é claro. A maior megalópole do mundo, Nova York, já tem produção de 11 mil toneladas de lixo por dia e já precisa pagar aos estados vizinhos, como Jersey, Pensilvânia, Virgínia, para descarregar seus 550 caminhões de lixo, todos os dias, alguns percorrendo até 500 quilômetros até o local de descarga.
Será que o ‘lixão’ da minha cidade, somado ao ‘lixão’ de todas as demais cidades da região onde vivo, mais os ‘lixões’ de todo o país não precisam de cuidados especiais para não se tornarem um problema sem tamanho a médio prazo, o que afetaria a nossa qualidade de vida? Quais as soluções ‘criativas’ que cada cidade está encontrando? Há projetos que podem ser aproveitados em outras regiões? Há uma eficiente troca de informações a respeito? Que tipo de estudos estão sendo feitos no Ministério do Meio Ambiente? Há uma integração com o Ministério da Educação e o Ministério das Cidades, com ações conjuntas, por novos hábitos de consumo, por exemplo?
É uma boa pauta tanto para um pequeno jornal do interior como para o maior jornal do país. Aliás, na última Semana do Meio Ambiente, em junho deste ano, pesquisei o maior jornal do país (Folha de S. Paulo) e não encontrei nada de importante sobre meio ambiente… mas isso é outra matéria (que aqui na área acadêmica chamamos de monografia).
Outro dado interessante sobre lixo: o Brasil recicla apenas 5% do lixo que produz. No entanto, o país é campeão mundial em reciclagem de alumínio e papelão. Por quê? Teria havido alguma campanha educativa a respeito? A mídia teria sido acionada, como ocorreu na campanha contra o hábito de fumar, que reduziu em um terço o número de fumantes nos últimos anos? Negativo. É que o desemprego leva as pessoas a saírem à cata de papelão e alumínio. São 300 mil catadores no país, e a atividade rende cerca de R$ 500 por mês – enquanto não inventam algum tipo de imposto sobre essa atividade também. A reciclagem de lixo e a história de vida dos catadores podem resultar em matérias muito humanas e edificantes, revelando por que o brasileiro não desiste nunca – se é para falar em auto-estima.
Água
Em toda redação de jornal há aqueles garrafões de água cristalina, gelada, puríssima, que os fornecedores trazem das fontes minerais… e substituem os galões vazios com tanta regularidade, de forma tão natural e rotineira, que mal paramos para pensar nessa pauta fabulosa que é a água. Mas, enquanto tiramos da torneira mais um copo gelado, não custa refletir que 1 bilhão de pessoas nem imaginam o que isto significa, pois sequer têm acesso à água potável, quanto mais gelada e mineral. Por isso, 300 milhões de pessoas morrem todos os anos infectadas por microorganismos presentes na água sem tratamento.
E, com a destruição dos mananciais, o assoreamento, o desflorestamento, o uso inadequado, as secas, a contaminação dos lençóis freáticos – a água está diminuindo. A previsão é que a produção mundial de água potável cairá 1/3 até 2030. São dados da ONU. O consumo da água também é muito desigual: uma criança que vive nos países industrializados consome de 30 a 50 vezes mais água do que uma criança dos países pobres.
Pobreza
No ambiente asséptico e refrigerado das grandes redações, com lanche à tarde e happy hour no fim do expediente, é difícil pensar que 1 bilhão e 200 milhões de pessoas passam fome diariamente, ou que 150 milhões de crianças estão abaixo do peso ideal para a sobrevivência segura. Também é complicado comparar esses números com outros igualmente inquietantes e ironicamente (!) iguais: outros 1 bilhão e 200 milhões de moradores deste planeta enfrentam o problema da obesidade. Nos EUA 55% dos adultos estão acima do peso e a lipoaspiração tem sido a operação estética mais popular, com 400 mil atos por ano. O faturamento da indústria farmacêutica passou de US$ 132 bilhões em 1983 para US$ 337 bilhões em 1999, mas de 1.233 medicamentos produzidos, só 13 destinavam-se, nesse período, a doenças tropicais: a grande parte destinava-se a problemas de hipertensão, obesidade e indigestão.
A economia global também revela o grave desequilíbrio social do mundo: Dos US$ 41 trilhões de faturamento global em 1999, 45% foram destinados aos 12% de países mais ricos do planeta. A tecnologia de ponta também favorece os países industrializados: neles estão, por exemplo, 87% dos usuários de internet.
Aquecimento global
Agora que a Rússia finalmente resolveu aderir ao Protocolo de Kyoto surgem esperanças de que se reduza a dispersão de gases que aquecem o clima da Terra. Mas seria fundamental que a nova administração Bush repensasse essa questão, pois o mundo precisa da contribuição dos EUA. Enquanto a meta de redução da emissão de dióxido de carbono (CO2) fixada para os EUA é de 7%, o país continua ‘contribuindo’ com 13% na produção desse gás poluente. Com uma população que representa menos de 5% dos habitantes da Terra, o país queima 43% da gasolina consumida no mundo, pois sua relação de automóvel por habitante é 100 vezes maior em comparação aos países em desenvolvimento.
Se a maior economia da Terra implementasse um programa amplo de substituição de combustíveis fósseis por energia renovável, culminando com a substituição dos tanques de gasolina dos carros por baterias de hidrogênio, inclusive financiando pesquisas semelhantes por todo o mundo, teríamos bilhões de carros gerando vapor de água nos escapamentos, em vez da sórdida poluição de origem fóssil.
Enquanto esta questão não se resolve, o aquecimento global vai se transformando na pior cilada da história humana. Com efeito, 13 das megacidades com mais de 10 milhões de habitantes estão em áreas costeiras, e a ‘expansão’ do mar (seja pelo derretimento das geleiras, seja pela própria progressão molecular causada pelo aquecimento da água) à base de um metro (já previsto pelos cientistas para o fim deste século) causaria um avanço de 1.500m lineares sobre a terra firme, sem contar que ilhas inteiras, como Tuvalu (uma ilha-nação no meio do Pacífico, entre Havaí e Austrália) desapareceriam, ocorrendo o mesmo com as baixadas de Bangladesh que produzem boa parte do arroz consumido no mundo, forçando a retirada (para onde?) de milhões de ‘refugiados climáticos’.
Conforme os cientistas, a temperatura média do mundo subiu 0,6% Celsius desde que se iniciaram as medições em 1861, causando a elevação de 15cm no nível do mar ao longo do século 20. Se nada for feito e a elevação chegar a 1 metro até 2100, um terço de Xangai ficaria submerso, os EUA perderiam 36 mil quilômetros quadrados de terra e até o Capitólio, em Washington, ficaria sob as águas, segundo o Worldwatch Institute. Os prejuízos poderiam chegar a US$ 150 bilhões só nos EUA…
Será que esta cifra (e toda a dor que ela pode vir a representar) não é muito superior aos eventuais sacrifícios que a maior economia da Terra possa vir a enfrentar caso decida aderir ao Protocolo de Kyoto? Não teria chegado a hora de concordar em ganhar menos para ganhar sempre? E no Brasil, quais seriam as conseqüências da elevação do nível do mar em até um metro neste século? Ou será que isto é problema ‘dos outros’ (como se a Terra fosse quadrada)? Qual a contribuição que o país tem dado à redução do aquecimento do clima? Como está o programa de exportação dos créditos de carbono? Será que esta pauta não interessa a todos nós?
***
O problema da pauta ambiental é que ela interessa diretamente ao receptor da notícia, mas nem sempre interessa ao grupo econômico que edita a publicação; então, temos a questão da ‘liberdade de empresa’, que substitui a ‘liberdade de imprensa’. Porque não seria conveniente prejudicar os investimentos imobiliários do litoral, por exemplo. Afinal, eles não são nossos anunciantes? Então, até onde vai a liberdade do pauteiro?
A pressão por melhores informações sobre a área ambiental é que vai definir, em curto prazo, o tamanho dessa liberdade.
******
Professor de Jornalismo na Unesp/Bauru, pesquisa Jornalismo Ambiental no programa de doutorado da ECA-USP