No recém-lançado livro The Journalism Manifesto [*] (Manifesto pelo Jornalismo), os professores Barbie Zelizer (Universidade da Pensilvânia), Pablo Boczkowski (Universidade Northwestern) e Chris W. Anderson (Universidade de Leeds, Reino Unido) resolveram mexer no “nervo exposto” das relações entre a imprensa e as estruturas sociais vigentes, sinalizando a urgência de mudanças profundas neste relacionamento sob pena de perda de relevância no ecossistema informativo global.
Os autores alegam que as mudanças geradas pelas novas tecnologias digitais abalaram a ideia de que a imprensa é uma instituição sólida e unida; desnudaram o fato de que ela não possui a autonomia que alega ter; que perdeu a centralidade que ocupava na tomada de decisões pela elite política e econômica; e, finalmente, que não apresenta mais a imagem de permanência temporal que foi uma das características centrais no seu passado recente.
O apego a estas quatro ilusões criou uma realidade imaginada que passou a condicionar os comportamentos, regras e valores de empresas cujos interesses e práticas as distanciam cada vez mais daquilo que chamamos de jornalismo [**].
1) A ilusão da unidade institucional
A instituição imprensa, como a maioria esmagadora das instituições tradicionais, sofre o trauma da emergência de novos comportamentos e valores associados a fenômenos disruptivos como a avalanche informativa, o fim da privacidade tradicional, a ascensão das moedas digitais e a crise do conceito de autoria.
A atual divisão das elites políticas e empresariais por questões ideológicas, como acontece hoje no Brasil e em outros países, contaminou a instituição imprensa por conta do histórico vínculo entre o poder e os grandes conglomerados midiáticos. A polêmica entre veículos de comunicação liberais e ultraconservadores se soma à guerra, nem sempre surda, entre a grande imprensa e as redes sociais virtuais, cujo crescimento acelerado rouba cada vez mais público de jornais e telejornais. Há divergências entre conglomerados como o News Corporation, do bilionário Rupert Murdoch, ferrenhamente conservador e que é o inimigo número 1 das redes, enquanto grupos liberais, como o The New York Times e Organizações Globo, no Brasil, propõem uma coexistência pacífica com megacorporações como Google, Facebook, Twitter e Amazon.
2) A ilusão da autonomia
A velha ideia de que a imprensa é autônoma em relação aos poderes políticos, econômicos e aos movimentos sociais perdeu totalmente sua consistência à medida que a digitalização mostrou a profunda integração e sinergia entre os grandes atores sociais. A tão badalada ideia de Quarto Poder perdeu definitivamente espaço no discurso institucional da imprensa e do jornalismo. Idem para a imagem de “cão de guarda” dos poderosos. A avalanche informativa na internet mostrou que quase tudo está interligado e que conceitos como transdisciplinaridade e transculturalidade são cada vez mais frequentes no vocabulário contemporâneo.
3) A ilusão de centralidade
A fragmentação da institucionalidade e o desgaste da ideia de poder autônomo tornaram inevitável a perda da centralidade que a imprensa alegava ter na consolidação do processo democrático. A velha associação da imprensa às elites políticas, militares, econômicas e sociais a afastou dos demais segmentos sociais, que encontraram nas redes sociais online o veículo para expressar seus desejos, sentimentos e necessidades. O discurso de que sem imprensa não há democracia perdeu força porque ela não soube, ou não quis, ser permeável às aspirações e reivindicações dos setores mais pobres da população.
4) A ilusão da permanência
Tudo isto somado, levou os autores do The Journalism Manifesto a questionarem a permanência da instituição imprensa no seu formato atual. Para os donos de conglomerados jornalísticos a ideia de permanência está associada à segurança, estabilidade e previsibilidade nos negócios. É um discurso que está em contradição com a realidade atual, onde a mudança tornou-se endêmica, especialmente nos negócios. Estamos vivendo o que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”, onde nada é permanente.
As quatro ilusões apontadas no livro The Journalism Manifesto ajudam a entender por que a grande imprensa está se isolando socialmente, ao agarrar-se a uma agenda noticiosa que prioriza a luta pelo poder dentro da elite política e empresarial. As classes C e D, bem como segmentos da classe B sentem-se marginalizados nos fluxos informativos nas mídias hegemônicas, atitude que está sendo adotada também por extremistas de direita, que se consideram excluídos do noticiário.
O corporativismo imobilizador
A defesa natural da imprensa neste contexto é usar o corporativismo para se entrincheirar na defesa de seus interesses, participando ainda mais diretamente na luta por poder dentro do establishment político e empresarial. É o que estamos assistindo neste momento, quando os grandes impérios midiáticos, no mundo todo, se aliam a setores políticos neoliberais para enfrentar a tríplice ameaça de movimentos de esquerda democrática, do avassalador avanço das redes sociais no espaço informativo antes dominado pela grande imprensa e da agressividade crescente dos movimentos de extrema direita.
Barbie, Boczkowski e Anderson acreditam que o recurso a ilusões reflete o medo de enfrentar a realidade de frente e tem como consequência levar a imprensa a viver um espaço de deslocamento institucional. As aparências de unidade, permanência, centralidade e autonomia distanciam os grandes títulos jornalísticos não apenas das audiências e do público, mas principalmente da realidade prática dos negócios nesta economia líquida que a era digital criou.
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Notas
[*] The Journalism Manifesto, 140 páginas, lançado agora em janeiro de 2022, pela editora anglo-americana Polity Books, como parte da série Manifesto. Ainda não traduzido ao português e à venda em versão digital na Amazon por US$ 10,00.
[**] No passado, imprensa e jornalismo se tornaram sinônimos por conta da necessidade de altos investimentos para produzir e distribuir notícias. Mas hoje, este tipo de empreendimento ficou muito mais barato graças à internet e à digitalização, o que permite uma diferenciação clara entre o negócio da notícia e a função jornalística. A lógica econômica fortaleceu a aliança da imprensa com os grandes grupos econômicos, enquanto a emergência das redes sociais aproximou o jornalismo das bases da sociedade.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC, professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária; mora no Rio Grande do Sul.