Quando a jovem Hadassa Gomes conseguiu entrar no espaço fechado do cercadinho, onde Bolsonaro recebe seus seguidores, e se tornou sacrílega ao dizer ao presidente “o senhor não é Deus”, alguém ao seu lado retorquiu “não é, mas é como se fosse!” Essa simples e curta frase resumiu ali toda a nova teologia dos evangélicos, da qual se apropriaram e à qual se adaptaram parte das denominações protestantes tradicionais.
Ao contrário do que Cristo anunciara, e ficou transcrito nos Evangelhos, em termos de uma nova aliança com os homens, a nova interpretação bíblica dos evangélicos (todas as tendências reunidas) é a de se fazer uma releitura do Velho Testamento. Essa releitura implica numa adaptação da linguagem de paz e amor expressa pelo próprio Cristo, transcrita por quatro de seus seguidores nos Evangelhos e defendida pelo apóstolo Paulo em suas epístolas, à linguagem severa de Jeová, que inclui castigo, punição, como ele próprio se define em Êxodo, 20, ao entregar os Dez Mandamentos a Moisés.
Entretanto, esse Deus exigente e justiceiro é capaz também de ignorar e perdoar as falhas e mesmo os crimes de seus escolhidos. O caso mais flagrante, que já comentamos num texto mais antigo, foi o de Davi, amoroso da bela Betsabea, casada, provocando a morte de seu marido Urias. Ou seja, ciente das imperfeições dos humanos, Deus (para os que creem) aceita tolerá-las, mas só nos seus escolhidos.
A primeira vez em que ouvi essa interpretação teológica foi ao arguir um pastor sobre como ele podia apoiar a eleição de um candidato a presidente que, na sua campanha eleitoral (um vídeo que viralizou mostrava isso) justificava a tortura, elogiava torturadores e dizia mesmo ser necessária a morte de umas trinta mil pessoas para se acertar a política brasileira. Essa crítica também incluía a vulgarização da mímica da arminha, imitada pelos seus seguidores, numa alusão à necessidade de mandar bala nos adversários. E a resposta me deixou surpreso: foi a de que “no Velho Testamento os homens de Deus não eram perfeitos!”
Estamos chegando às eleições, faltam sete meses, e as prévias confirmam haver um núcleo irredutível de apoiadores fiéis ao presidente Bolsonaro, apesar de sua política errada com relação às vacinas, provocando centenas de milhares de mortes evitáveis, e mesmo agora, mantendo sua mesma versão em favor de medicamentos ineficazes e sua posição contrária à vacinação de menores e crianças. Sem se esquecer da proliferação das armas de fogo, importadas inclusive da pacata Suíça, e mais de mil licenças para porte de armas por dia. Esse núcleo irredutível de fiéis ao presidente são os evangélicos, mesmo se nisso existe um conflito entre o que se prega e o que ele faz.
Hadassa Gomes desconhecia a nova teologia, “não é Deus, mas é como se fosse”. Porém, nem tudo é desculpável aos pastores que, nestes três anos, consideraram Bolsonaro escolhido por Deus. Mesmo porque, repetindo suas teorias e seus apoios pelo menos todos os domingos, diante de igrejas cheias, em vídeos seguidos por milhões, eles impedem a essas pessoas sem grande instrução exercer um juízo crítico. Vamos deixar de lado o negacionismo contra as vacinas, o negacionismo contra o perigo do armamento da população, para lembrarmos as provocações feitas, em nome de Deus, no 7 de Setembro, tanto em Brasília como em São Paulo, contra a democracia.
Era o Dia de Ser Patriota, como pregava um vídeo do pastor Malafaia na Internet destinado aos fiéis evangélicos.
No dia 7 de setembro de 2021, eles eram sete pastores ao lado do presidente Bolsonaro, dispostos a incitar o povo ao golpe contra a democracia. Alguns dias antes, o pastor Cláudio Duarte, da Igreja Projeto Recomeçar, com mais de cinco milhões de seguidores, entre Instagram e Youtube, havia afirmado em sua igreja: “estamos à beira da guerra civil”.
Bem antes das eleições de outubro de 2018, o pastor havia optado por apoiar o candidato Jair Bolsonaro e dizia aos milhares de seguidores que deixaram de segui-lo “é melhor já ir se acostumando”. Essa sua preferência já se poderia adivinhar numa foto publicada no blog Polêmica Paraíba, reproduzida de seu instagram em abril de 2017, na qual ele aparecia empunhando um fuzil e cartucheiras com balas nos ombros, numa visita feita ao Museu do Cangaço. Nisso, o pastor até precedeu a preferência de Bolsonaro pelo “gesto das arminhas”.
O trajeto do pastor Cláudio Duarte pela política, utilizando sua influência de pregador do Evangelho junto aos milhões de fiéis em favor de Bolsonaro, foi sempre coerente com suas convicções: apoiou nas eleições de outubro de 2018 e apoia até agora. Entretanto, nesse trajeto de mais de três anos, seria arriscado afirmar ter sido Bolsonaro, até aqui, um presidente evangélico, temente a Deus, como costumam dizer.
Eles eram sete – esse número, como publicou a revista Veja na época, é ligado nos Evangelhos ao demônio, além de ter também a fama de ser conta de mentiroso – ali no palanque erguido na avenida Paulista, cada um provavelmente com sua Bíblia. Foi o próprio pastor Silas Malafaia, um dos sete, quem fez circular o vídeo convidando os fiéis a comparecerem.
Bolsonaro, depois de ter proferido ameaças ao Supremo Tribunal Federal e especialmente ao ministro Alexandre de Moraes, precisou lavar a boca e rezar uma carta de desculpas redigida pelo ex-presidente Temer. Mas os sete pastores incitadores da desordem e do golpe (que, apesar de suas orações, felizmente não aconteceu), não se desculparam nas suas igrejas e nos seus púlpitos online por terem tramado contra a democracia.
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.