Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Brincando com coisa séria

(Print do filme “Não olhe para Cima”/Netflix)

(Foto: ParentRap/Pixabay)

Refletindo sobre o que foi mostrado no filme “Não Olhe Para Cima” (Netflix, 2021) a respeito do papel da imprensa, sobretudo, caricaturizada (?) nas figuras dos jornalistas Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry), lembrei-me de um texto escrito há cerca de 130 anos pelo jornalista, humorista e romancista Samuel Clemens (1835-1910), mais conhecido pelo pseudônimo de Mark Twain: “Sobre a ‘entrevista’”.

Seus biógrafos situam o manuscrito como sendo de 1889 ou 1890. Nessa época, ele já era famoso pela publicação de “As Aventuras de Tom Sawyer” (1876), “O Príncipe e o Mendigo” (1881), “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884), entre outros clássicos da literatura que ajudam a entender melhor a história dos Estados Unidos. Mas ele também já contava com uma longa trajetória como jornalista, tendo iniciado a carreira na adolescência trabalhando no jornal de seu irmão mais velho, o Hannibal Journal, no Missouri; depois atuando como repórter, cronista ou correspondente estrangeiro em publicações de Nova York, Califórnia, Nevada, Ohio e Pensilvânia, chegando até a ser proprietário e editor do Buffalo Express, no estado de Nova York.

Toda essa bagagem, associada a sua veia satírica, fez com que escrevesse um pequeno ensaio sobre uma das técnicas e formatos jornalísticos mais utilizados: a entrevista. Trata-se de um texto pouco conhecido e publicado apenas recentemente, em 2010, sendo que os biógrafos que o encontraram acreditam, inclusive, que o manuscrito ficou inacabado. Parece parte de um manual de media training, pois fala diretamente à pessoa a ser entrevistada, dando pistas sobre as estratégias utilizadas pelo entrevistador.

Muito habilidoso com a escrita, é possível ver no texto duas perspectivas: a do jornalista Samuel Clemens, que entrevistava; e a da personalidade Mark Twain, constantemente entrevistado. Como figura de linguagem, ele compara o entrevistador a um ciclone. É aquele que não sabe sobre seu poder de destruição, acreditando estar levando uma brisa suave a lugares abafados.

O que fez a lembrança aflorar sobre a relação deste texto de Mark Twain com a primeira entrevista dos cientistas Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiaski (Jennifer Lawrence) na televisão foi o seguinte diálogo entre os entrevistadores e a entrevistada:

Kate Disbiaski – “Desculpe… Não estamos sendo claros! Estamos tentando lhes dizer que o planeta inteiro está prestes a ser destruído”.
Brie Evantee – “É uma coisa que fazemos por aqui para deixar as más notícias mais leves”.
Jack Bremmer – “Ajuda o remédio a descer”.
Kate Disbiaski – “Bem, talvez a destruição completa do planeta não deveria ser uma coisa divertida”.

Algumas cenas antes, um outro jornalista havia recomendado que os cientistas fizessem um media training antes de aparecerem na TV.

Mas o que um jornalista, humorista e romancista que morreu há mais de 100 anos tem a ver com isso? Leia o manuscrito abaixo, tire suas conclusões e voltamos com a conversa.

Sobre a ‘entrevista’”

Ninguém gosta de ser entrevistado e, no entanto, ninguém gosta de dizer não; pois os entrevistadores são corteses e bem-educados, mesmo quando eles vêm para te destruir. Não me entendam mal: isso não significa que eles vêm conscientemente para te destruir ou têm consciência depois que te destruíram; não, acho que a atitude deles tem a ver com a de um ciclone, que vem com o gracioso propósito de refrescar uma cidadezinha sufocante, e depois, não percebe que fez àquela cidadezinha tudo, menos um favor. O entrevistador te espalha por toda a partes, mas ele não tem ideia de que você possa achar isso uma desvantagem. As pessoas que culpam um ciclone o fazem porque não refletem que massas compactas não são a ideia de simetria de um ciclone. As pessoas que criticam o entrevistador o fazem porque não refletem que ele é, no fim das contas, somente um ciclone, embora disfarçado à imagem de Deus, como todos nós; que ele não está consciente do mal que provoca, mesmo quando está esfarelando um continente com seus restos mortais, pensa somente que está tornando as coisas agradáveis para você; e que, portanto, acredita que a maneira correta de ser julgado é por suas intenções, não por seus feitos.

A entrevista não foi uma invenção feliz. É talvez a mais pobre de todas as maneiras de se chegar ao que está dentro de um ser humano. Em primeiro lugar, o entrevistador é o inverso de uma inspiração, porque você tem medo dele. Você sabe por experiência que não há escolha diante do desastre. Não importa o que ele coloque na entrevista, você suspeitará que teria sido melhor se ele tivesse colocado outra parte: não que a outra fosse melhor do que aquela, mas apenas que não teria sido essa; e qualquer mudança deve ser, e seria, uma melhoria, embora, na realidade, você saiba muito bem que não seria. Posso não estar sendo claro: se assim for, então me fiz entender – uma coisa que não poderia ser feita a não ser não me expressando claramente, pois o que estou tentando mostrar é o que você sente nesse caso, não o que você pensa – pois você não pensa; não é uma operação intelectual; é apenas andar em círculos confusos, sem sua cabeça. Você só deseja de uma maneira idiota não ter feito aquilo, embora, na verdade, você não saiba o que gostaria de não ter feito e, além disso, você não se importa: esse não é o ponto; você simplesmente deseja não ter feito aquilo, seja lá o que for; já que é uma questão de menor importância e não tem nada a ver com o caso. Você entende o que quero dizer? Você tem se sentido assim? Bem, é assim que alguém se sente quando vê que sua entrevista é publicada.

Sim, você tem medo do entrevistador, e isso não é nada inspirador. Você se fecha em sua concha; você se coloca na defensiva; você tenta não chamar a atenção; você tenta ser astuto e fala tudo sobre um assunto sem dizer nada: e quando você isso impresso, fica doente ao ver o quanto atingiu seu objetivo. O tempo todo, a cada nova pergunta, você está alerta para detectar para onde o entrevistador está te dirigindo, e como contorná-lo. Especialmente se você o pegar tentando te enganar para dizer coisas engraçadas. E, na verdade, é isso que ele está tentando fazer o tempo todo. Ele mostra isso tão claramente, trabalha para isso de forma tão aberta e descarada, que seu no primeiro esforço a fonte se fecha, e no próximo, entope de vez. Eu não acredito que alguma coisa realmente engraçada tenha sido dita a um entrevistador desde a criação dessa estranha atividade. Mas como ele precisa ter algo “característico”; ele mesmo inventa as gracinhas, e as intercala quando está escrevendo sua entrevista. Eles são sempre extravagantes, muitas vezes muito prolixos e geralmente enquadrados em “dialetos” – um dialeto inexistente e impossível. Este tratamento destruiu muitos humoristas. Mas isso não é mérito do entrevistador, porque essa não era a intenção dele.

Há muitas razões pelas quais a entrevista é um erro. Uma delas é que o entrevistador nunca parece refletir que, depois de explorar esta, aquela e outra informação, por meio de uma infinidade de perguntas, até encontrar uma que flua livremente e que seja de interesse, a coisa sensata a fazer seria se focar nessa, tirando o melhor proveito dela, deixando de lado o resto que havia recolhido. Ele não pensa sobre isso. Ele certamente fechará aquele filão fazendo uma pergunta sobre algum outro tema; e, imediatamente, a pequena chance de conseguir algo que valha a pena levar para casa se vai, e se vai para sempre. Teria sido melhor se ater ao que o entrevistado estava mais interessado em falar, mas você nunca seria capaz de fazê-lo entender isso. Ele não sabe quando você está entregando metal de quando você está descarregando escória, ele não sabe distinguir entre fuligens e moedas; é tudo a mesma coisa para ele, ele coloca tudo o que você diz; ele apenas enxerga tudo como uma coisa imatura e sem valor, então, ele tenta consertá-la colocando algo por si próprio, que ele acha que está maduro, mas, na verdade, está podre. Na verdade, ele tem boas intenções, mas o ciclone também.

Agora, suas interrupções, seu jeito de te desviar de um tema para outro, têm, de uma certa maneira, um efeito muito sério: você se sente contemplado em cada tema, mas apenas parcialmente. Geralmente, você tem apenas o suficiente de sua declaração para te prejudicar; você nunca chega ao ponto em que pretendia explicar e justificar sua posição. (Tradução: Edgard Rebouças)

É o entrevistado quem precisa de media training ou é o entrevistador que carece de conhecimento para identificar os pontos cruciais tratados na entrevista? A entrevista, seja como técnica de apuração ou como formato textual nos gêneros informativo e opinativo, tem que ter como elemento principal as informações que fonte tem a dar. O conteúdo do entrevistado é que legitima a informação jornalística. Não a pauta, a edição ou a intenção do repórter, do editor ou do dono do jornal.

Ao longo dos anos, e da “racionalização” do fazer jornalístico, o espaço do falar/narrar quase que anulou por completo o princípio do ouvir/reportar. Afinal, é o entrevistado quem detém o conhecimento do tema, o entrevistador é um mediador, no máximo um “tradutor”. Mas que insiste em fazer a sua versão.

Alegando falta de espaço, de tempo ou, pior, que “o público quer as coisas mais mastigadas”, o jornalismo perde a oportunidade de colaborar para a informação correta e conhecimento das pessoas sobre temas importantes. Deixando assim um campo muito fértil para a desinformação e as brincadeirinhas com assuntos tão sérios. E como lembra a cientista da “ficção”: “Talvez a destruição completa do planeta não deveria ser uma coisa divertida”.

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Edgard Rebouças é jornalista, professor na Ufes, coordenador do Observatório da Mídia, diretor da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e um coordenador de pesquisa da Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD).