Jesus, um dileto filho do judaísmo, capa da revista Time como Homem do Ano em 2002, não sai da mídia. Basta que lembremos os programas ditos evangélicos no rádio e na televisão.
Sua presença na literatura de boa qualidade está em Rei Jesus, de Robert Graves, de 1947. Nikos Kazantzakis, mais conhecido como autor de Zorba, o Grego, dedicou-lhe dois romances: O Cristo Recrucificado (1948) e A Última Tentação de Cristo (1951). Este último resultou em grande polêmica ao ser adaptado para o cinema por Martin Scorsese, em 1988.
O americano Norman Mailer, em 1997, publicou O Evangelho do Filho, romance que não teve a repercussão de outros livros seus, como Os Nus e os Mortos.
Até o médico, dramaturgo e escritor ucraniano Mikhail Bulgakov escreveu O Mestre e Margarida, entre 1928 e 1940, mas que somente veio a ser publicado em 1966. Apesar de Stalin ter gostado de sua peça de teatro, Os Turbins, Bulgakov ridicularizou o regime em diversos escritos e por isso ficou desempregado um bom tempo, o que o levou, em desespero, a escrever ao próprio ditador queixando-se.
O espanhol Fernando Sánchez Dragó publicou Carta de Jesus ao Papa, em 2001, dez anos depois de José Saramago ter feito sucesso e causado controvérsia com O Evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991. Jesus foi personagem também de Operação Cavalo de Tróia, do espanhol Juan José Benítez.
Construções arrevesadas
Nenhum dos citados causou, porém, a comoção do jornalista americano Dan Brown com O Código da Vinci, em 2003, já levado ao cinema. Pier Paolo Pasolini fizera um Jesus simples e objetivo em O Evangelho segundo Mateus, em 1964. Luís Buñuel também se ocupou de Jesus no filme Nazarin (1958).
Mel Gibson escandalizou meio mundo com A Paixão de Cristo, que apresenta uma contribuição singular, ao lado da extrema violência dos castigos inflingidos pelos romanos, que são os diálogos em aramaico.
Além disso, temos a visão debochada de A Vida de Brian (1979), dirigido por Terry Jones, do grupo humorístico Monty Python.
Norman Jewison até hoje está presente, inclusive no Brasil, com a constante reinvocação da ópera de rock Jesus Cristo Superstar (1973), com músicas de Andrew Lloyd Webber e arranjos de Tim Rice, que quase repetiram o sucesso cinco anos depois, em 1978, com outra ópera de rock, Evita, protagonizada pela cantora Madonna.
Este quadro de referência fixa o contexto em que apareceu o romance Entre Todos os Homens (1997), de Frei Betto, que acaba de ser relançado com outro título: Um homem chamado Jesus (Editora Rocco, 2009).
Já escrevi e agora reitero: este romance é, como artefato literário, mais bem construído do que O Evangelho segundo Jesus Cristo, do Prêmio Nobel José Saramago. Talvez a principal razão seja o fato de o frade e escritor operar um estilo marcado por uma sintaxe simples, em oposição às arrevesadas construções frasais de Saramago.
‘A César o que é de César’
Os dois romances devem ser lidos com duas cautelas diferenciadas: José Saramago é ateu, comunista e homem de esquerda, mesmo depois de ter caído o muro de Berlim. Escritor talentoso, aventurou-se a escrever um romance sobre um personagem com o qual não pode ter a intimidade que tem Frei Betto. A figura solar do romance de José Saramago só podia ser Jesus, alguém que ele conhece muito pouco. Talvez ele tenha tropeçado nesta falta na realização de sua obra, entretanto com extraordinária receptidade por parte do público, mais do que da crítica.
Já o romance de Frei Betto ocupou-se, sendo cristão, de um projeto semelhante ao de José Saramago: revelar o lado humano de Jesus, tema que está presente tanto no primeiro título quanto neste.
Ele situa Jesus na História e procura ser o mais isento possível. Assim, em Diário da Paixão, no capítulo XXVI, fixa os eventos decisivos em abril do ano 30. O domingo de Ramos, quando Jesus entra em Jerusalém com pose de rei, montado num jumento, é designado por ‘primeira-feira’. Aclamado pela multidão, inquieta membros do sinédrio, como Matthia ben Shemuel, que é interpelado por Simão Pidoeus: ‘Vê, nada conseguiste. Todo mundo vai atrás dele!’
Na terça-feira, fariseus procuram Matthia Ben Shemuel e a ‘a ordem de prisão contra Jesus é reforçada, com a ressalva de que não se cumpra à vista da turba’.
Nos parágrafos seguintes, vemos o ardiloso Caifás, sumo sacerdote, eximir-se de mandar prender Jesus, pois os romanos podem fazer o serviço. Arma, então, o estratagema de fazer com que Jesus negue os impostos devidos a César, mas a resposta, dita sob a égide da moeda com a efígie de Tibério César, que mais tarde morreria assassinado, com toda a família, desconcerta e frustra a armadilha: ‘Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.’
Pássaros de barro que voam
Na quinta-feira, dá-se, entretanto, a prisão de Jesus, traído por Judas, o que renderá mais alguns romances e até um evangelho apócrifo que busca redimi-lo, ao apresentá-lo como alguém que está destinado a fazer com que se cumpra o que as escrituras predisseram: a morte de Jesus na cruz, a pior execução aplicada por Roma, da qual estavam livres apenas os cidadãos romanos. Um seguidor de Jesus, naquele mesmo século, Paulo, é decapitado em Roma, a pouca distância de onde Pedro, o outro discípulo, por não ser cidadão romano, era crucificado de cabeça para baixo.
Na sexta-feira vem a morte na cruz, que renderá a Dan Brown o fascinante argumento de negá-la e fazer com que Jesus e Madalena, casados, fujam para a França, onde terão filhos.
Enriquece o romance um Epílogo, que traz informações curiosas, como a deportação de Caifás, a execução de Tibério, as várias versões sobre o fim de Pilatos, que teria se suicidado em Viena, para onde fora desterrado por ordem de Calígula; ou sobrevivido e se tornado cristão, acreditando tarde nos sonhos de Porciúncula, sua mulher, que o advertira de que iria condenar um justo, e ainda assim se tornado santo, sendo venerado na Etiópia com o nome de São Pôncio Pilatos.
Lázaro, Marta e Maria fogem e vão morar em Marselha, na França. Tiago de Alfeu vai para a Espanha, onde é martirizado e hoje dá nome ao famoso Caminho de Santiago, designando a Via Láctea e o trajeto que os peregrinos fazem até hoje.
Jesus é um grande personagem e desta vez encontrou no Brasil um escritor qualificado para tratar dele literariamente. Ainda está na memória de muitos e em vários sebos o romance Vida de Jesus, que o político e escritor brasileiro Plínio Salgado, admirador do nazismo e do fascismo, membro da Academia Paulista de Letras, publicou em 1942. Num dos trechos, Jesus, brincando com os coleguinhas, molda pássaros de barro e depois os faz voar.
Frei Betto não recorreu a esses artifícios inverossímeis e fez um romance fincado no que pode ter sido a vida real de um Jesus humano naqueles dias conturbados da Palestina sob dominação do maior império do mundo.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)